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Crítica | Demolidor: A Queda de Murdock

por Luiz Santiago
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O Prólogo de A Queda de Murdock é impiedoso, instigante e doloroso de se ler. Ele deixa claro, sem firulas, o inferno que viria a seguir. Em apenas três páginas, Frank Miller acaba com alguns sonhos dourados sobre a (ex) bela Karen Page, agora atriz pornô e viciada em álcool e heroína. De posse de uma informação valiosíssima, Karen se vê guiada pela dependência química e digladia-se com sua consciência sobre que passo dar a seguir. Matthew Murdock é um nome que ela tem escrito num papel. Para o Rei do Crime, esse nome simboliza um alvo de vingança. Para Karen Page, o amor de uma vida inteira. Uma vida e um amor que ela está prestes a trair.

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Do Apocalipse ao Renascimento

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A verdadeira força de um herói é vista na forma como ele lida com suas desgraças pessoais. Agora imagine essa questão colocada em uma editora como a Marvel, que sempre foi chegada em temas humanos e heróis urbanos, sofredores, azarentos e passíveis de todas as fraquezas e impulsos humanos possíveis — caso bastante ilustrativo quado falamos do Aranha e do Demolidor, por exemplo.

Em sua segunda fase majoritária à frente do Demolidor, Frank Miller faz desses “pontos fracos” o molde central de uma saga aterradora, criando uma situação onde Murdock se veria desprovido de amigos (ou assim ele imaginava), casa, dinheiro, reconhecimento, nome, autoconfiança. O recrudescer da violência na vida do herói e as constantes perdas pessoais num curto espaço de tempo — consequências de um jogo cruel executado com perfeição à la Sun Tzu pelo Rei do Crime — fazem com que Murdock sofra cada vez mais, tanto pela angústia de não saber a origem de toda sua desgraça quanto pelo momento pouco propício em que isso chegou à sua vida.

A premissa é clara e não há concessões. O Demolidor sofrerá, e muito. Preso em uma cidade onde é suspeito, perseguido e onde sabe que seus inimigos estão rindo dele e preparando algo ainda pior, o herói busca, com amplo uso de violência, os culpados por seu atual estado. Ele assume a postura de um quase Rorschach, torturando criminosos menores em bares novaiorquinos a fim de descobrir o que quer. Não funciona. Como bônus, ele começa a alucinar, desenvolve mania de perseguição, vê seus sentidos apurados diminuírem o alcance e a potência e sua saúde mental ir de mal a pior.

Temas bíblicos são parte da linha narrativa de A Queda de Murdock.

Se observamos as geniais páginas-título de David Mazzucchelli para as duas primeiras edições, veremos o início dessa decadência: do espaço da casa, para um minúsculo quarto de hotel, onde o herói se vê descoberto e em posição fetal. Note-se também que o roteiro associa essa frente de desgraças ao inverno, um toque metafórico que se torna ainda mais relevante quando fazemos oposição ao espaço geográfico ocupado pelo Rei do Crime e Karen Page no momento inicial da aventura.

As 4 primeiras edições de A Queda de Murdock nos mostra de maneira assustadoramente verossimilhante os estágios de inocência, negação, depressão e recuperação do famoso advogado da ‘Cozinha do Inferno’. É então que Miller passa a explorar valores morais de peso na linha corrente da história, especialmente a partir de Purgatório. Todos têm algo a perder e algo pelo quê lutar, mas uns têm mais força e disponibilidade momentânea que outros. Sobra aos desprovidos a coisa mais selvagem do ser humano: o puro instinto de sobrevivência.

Antes que Murdock comece a questionar seus valores, ele passa um scanner moral pela sociedade e pelo micromundo ao seu redor, percebendo que não há nenhuma forma de sair vivo da situação em que se encontra se ele não lutar, de maneira quase inumana, pela sua vida. Ao mesmo tempo em que isso se intensifica e atitudes de outras personagens ganham espaço, o teor religioso do herói vem à tona, inicialmente e forma interrogativa, deixando muito claro o discurso do cristão bem-aventurado que não se conforma com sua vida miserável (a paciência e submissão de Jó não são virtudes de Matt Mudock); mas depois de aceitação do socorro quase divino, um milagre que, analisando friamente, é mais uma expiação de pecados por parte de quem faz do que qualquer outra coisa.

Perceba que as 4 primeiras páginas-título (contando as duas anteriores) é com Murdock prostrado, sempre deitado e em situação cada vez pior. Analise também as posições fetais dos capítulos 2 e 3 e a posição de quase-Cristo que o herói está em Born Again.

A essa altura, a memória do passado do protagonista é mais forte e sua saúde cada vez mais fraca. Miller constrói um solilóquio trágico que se reflete por toda Nova York: Urich e Karen são perseguidos e ameaçados; Foggy e Glori são assaltados; o crime prospera e assassinatos estratégicos são realizados a mando de Wilson Fisk. A cidade inteira parece mergulhada em podridão, situação que se mostra ainda mais intensa porque alguém que deveria está lá fazendo alguma coisa para minimizar tais efeitos, não está.

É nesse momento que vemos Murdock começar a reagir ao tratamento das irmãs. Ele não sabe ao certo, mas está sendo preparado para um grande mal vindouro, um super-soldado contratado para finalizar o trabalho frustrado de Fisk após o “acidente” na ponte. A ameaça, no entanto, pode se espalhar por toda a cidade. “Bazuca” é alguém que veste o emblema ideológico de um país e se julga fiel a ele, mas é também um viciado em pílulas que não valoriza nenhuma vida humana fora das Forças Armadas dos Estados Unidos e obedece ordens patriotas cegamente. É quase a teoria do idiota sofisticado, só que exercida por uma ‘máquina de guerra’ praticamente irracional, uma versão mais crua e estúpida do Comediante em tempos militares.

Então, não por acaso, o nome da edição seguinte tem um duplo sentido messiânico: Salvo.

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Da Salvação ao Armagedon

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Perseverança. Boxe. Recordação. Pai. Herói. Uma breve associação livre feita por Matt Murdock nos traria essa exata sequência de palavras, talvez resultado de uma associação permanente em sua vida, algo que foi se tornando cada vez mais forte nos arcos do personagem desde as primeiras reformulações temáticas pelas quais passou. Quando sua ‘queda’ acontece, não é que ele fosse um afortunado milionário sem problemas e que, mais por capricho do que por outra coisa, combatia o crime.

Murdock sempre esteve às voltas com crises pessoais, fosse por sua pobreza na infância e juventude, pelo acidente que o deixou cego, pelo pontual complexo de inferioridade observado nas primeiras edições de Daredevil (1964), o abandono da mãe, a morte do pai… Compreendemos que desde o início de sua jornada o mundo em volta parecia mais estranho que o normal, talvez mais estranho do que para qualquer herói, principalmente porque o ‘diabo destemido’ não era misantropo, sua visão sobre o mundo incluía o já citado senso cristão de amparo e defesa dos pobres (ele é advogado!) a despeito de todas as dificuldades possíveis (ele é cego!). Em Diabo da Guarda, Kevin Smith e Joe Quesada explorariam em um nível quase filosófico esse lado do herói.

Agora imaginemos isso dentro de uma perspectiva de renovo e num roteiro que tem a marca da “dor que transforma”, premissa fortíssima nos enredos de Frank Miller. O resultado é um espelho do ideal de Cristo para o sacrifício, “morte” e ressurreição, exatamente o que acontece ao nosso herói aqui e num exercício admirável de Miller para algo que a filósofa Julia Kristeva nos alertara em seus trabalhos de linguística: “todo o texto é absorção e transformação de outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, se instala a de intertextualidade, e a linguagem poética se lê, pelo menos, como dupla.

De volta aos temas bíblicos mas, no final do arco, com um “quê” delicioso de ironia e múltiplos sentidos.

Após ter sido salvo e cuidado pelas irmãs, Murdock usa como base de recuperação psíquica a memória de seu maior exemplo: o pai. Mazzucchelli já tinha realizado um genial trabalho simbólico-imagético em toda a queda do herói, mostrando-o prostrado, deitado, em ângulos pouco favoráveis e sempre perdido ou preso no cenário de um quadro (exceto nas primeiras páginas de Apocalipse, quando o inferno ainda se erguia). A partir de Salvo, ele faz o herói ganhar compassada importância visual em todos os ambientes em que aparece e, já na edição Por Deus e Pela Pátria, faz com que ele assuma total controle sobre si mesmo e sobre os vilões de seu ambiente.

Qual é a primeira ação de Murdock após o seu retorno? Salvar alguém. Miller desprende-o de um egoísmo grandioso como ir procurar o Rei do Crime ou fazer algo unicamente para si antes de atentar para seus amigos e conhecidos com dificuldades. Primeiro, ele salva Urich e a esposa; depois, o dono da loja de fantasias; depois, Foggy e Karen e só então parte para a sua “primeira luta pessoal” após renascer; não como um herói, mas como um homem comum que só tinha a vida para defender e nada mais para perder — o irônico é que ele luta contra um vilão vestido de Demolidor. Ah, Frank Miller, seu…!

Então vem o perdão, o giro da roda da fortuna e a sombra do motor que gerou a crise. Existem leitores que não gostam da edição Por Deus e Pela Pátria, por julgarem-na desconexa da trama em geral. A pergunta que se faz é: se a nação ou, em campo menor, se o Estado ou a cidade não tivessem uma organização corrupta e viciada, os dissabores de Murdock teriam acontecido? Tanto nesse volume quanto no último do arco, Armagedom, olhamos para fora do microcampo de uma crise pessoal, enxergamos os fatores que fizeram alguém conhecido como Matt Murdock ir ao fundo do poço, mas entendemos que é exatamente esse meio que cria boa parte dos vilões que o próprio Demolidor combate!

As duas últimas páginas de A Queda de Murdock: a guerra não tem fim.

Mas Miller não pára por aí. Ele também questiona a ação do herói pelo bem da nação e o patriotismo como justificativa para se esquecer dos “insignificantes” e tratar com prioridade os “assuntos do Estado”. O autor coloca isso num debate denso: qual dos dois bandeirosos que aparecem serviam de verdade aos Estados Unidos? Qual das duas ‘nações’ é a verdadeira? A que gerou o Agente Simpson “Bazuca” ou o Capitão América? Perceba que a pergunta vai além da motivação para se fazer o supersoldado. Ela decai sobre o uso que se faz deles. Miller se afasta do perigo de uma resposta pronta e nos mostra o retorno do trem aos trilhos, mas deixa claro que a queda de Murdock foi apenas uma batalha no meio de uma guerra que vai além de militares, reis do crime, tráfico e vícios.

Ele chega à conclusão de que a “queda” também é da civilização, não apenas do homem, seja ele um super-herói cego ou uma ex-secretária que tinha sonhos de ser atriz de cinema e se tornou uma viciada em heroína. O verdadeiro problema vem quando sabemos que tudo e todos caem, mas nem todos se levantam para (re)construir o mundo em volta e, dependendo de quem se levantar primeiro, o resultado pode ser catastrófico. Bonança após a tempestade? Para Frank Miller, isso não existe. Mas ele deixa claro que há esperança. Isso é tudo o que basta para continuar lutando. O Demolidor que o diga.

Demolidor: A Queda de Murdock
Publicação original: Daredevil Vol. 1 #227 – 233 (EUA, fev. – ago., 1986)
Publicação no Brasil: Editora Salvat, 2014 (mas houveram muitas outras)
Roteiro: Frank Miller
Arte: David Mazzucchelli
Cores: Christie Scheele, Richmond Lewis
192 páginas

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