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Crítica | Dersu Uzala, de Vladimir Arseniev

por Luiz Santiago
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Publicado em 1923, Dersu Uzala é um livro de memórias do explorador e desbravador militar Vladimir Arseniev, contando uma de suas expedições pela taiga russa e o encontro com um homem que marcaria a sua vida e com quem firmaria uma grande e improvável amizade, o russo de etnia gold (também chamado de povo nanai, presente tanto na Rússia quanto na China, pois habitam as margens de rios de fronteira ou pequenos montes nas proximidades dos dois países) que dá título ao livro, Dersu Uzala.

Desde 1900, Arseniev servia ao Exército do czar — e depois o soviético — como especialista em geografia, cartografia, etnologia e geologia, liderando missões que tinham por objetivo mapear e registrar territórios, pessoas, modo de vida, fauna e flora do extremo oriente russo. A aventura registrada em Dersu Uzala começa em 1902, quando Arseniev esteve pela primeira vez nesta parte da Sibéria, mas a narrativa combina outras duas expedições feitas pelo explorador à região até o ano de 1907. Aqui, as memórias são mescladas com mitos sobre o povo nanai e alguma romantização do autor, embora predomine a experiência tida durante 1 ano e 7 meses (não contínuos) que passou ao lado de Dersu, aprendendo e explorando a região.

O leitor precisa ter um pouquinho de paciência com o início da obra, o curto capítulo O Vale do Vidro. A linguagem mista de relato de viagem e romantização cria um gênero híbrido um pouco difícil de atravessar, até porque, o autor usa esse começo para nos localizar geograficamente no lugar onde ele está, as condições históricas e cotidianas de um povoado próximo e momentos rápidos da viagem. Em pouco tempo, porém, essa narrativa é abstraída e vai se tornando cada vez mais interessante, principalmente depois de O Visitante Noturno, que é quando Dersu aparece pela primeira vez.

Depois da pequena dificuldade inicial de adaptação, o leitor não consegue mais desgrudar do livro, tendo, talvez, a mesma dificuldade para digerir a parte final, mas por outro motivo. Entre esses pequenos obstáculos, o que temos em mãos é uma aventura tão intensa, tão instigante e tão cheia de detalhes que fica impossível não se apaixonar pelos personagens e pelo cenário natural. A ideia de um “nativo sábio”, com a qual Dersu é vestido, não ganha ares de exotismo barato. Arseniev relata o homem (e um pouco personagem) com grande respeito e carinho, algo que veremos acompanhar as descrições do autor até o final.

Toda gama de dificuldades para atravessar a taiga em diferentes estações do ano é uma verdadeira joia. É um tipo diferente de aventura, porque sabemos ter sido real, ao menos em sua maior parte, e o fato de termos pessoas que de fato existiram e locais que reconhecemos de nome — pelo menos quem sabe ou estudou um pouquinho da geografia local como preparação para a leitura — ajuda a ver tudo com outros olhos. O impacto é diferente e a nossa recepção parece maior, mais sentimental, não apenas para pessoas mas também para animais, talvez uma forma de imitarmos Dersu e seu imentos respeito pela natureza.

Confesso que depois da leitura eu passei alguns dias “bancando o Dersu”, tentando imitar o que o nanai fazia para detectar chuva através de sinais básicos, apenas olhando para o céu. É fascinante o modo como o vemos usar os sentidos para perceber animais e reações da natureza e utilizar tudo isso a seu favor. Poucos livros nos mostram uma comunhão tão grande entre homem e natureza e poucos são os personagens que nos parecem tão íntimos de um território, de um lugar. Facilmente atribuímos a Dersu um quê de misticismo, mas não por “culpa” do autor. Não há nada de místico, ao menos no sentido que entendemos como “místico”, no livro. O que acaba PARECENDO é a força da natureza sobre os homens e a forma como ela pode matar, caso não seja interpretada corretamente.

Dersu Uzala é um livro sobre a relação entre homem e natureza (minha passagem favorita é a épica e emocionante travessia do rio), sobre a amizade, sobre a velhice. A excelente adaptação para o cinema feita por Akira Kurosawa captura com precisão cada um dos ingredientes desses espaços. Há algumas mudanças feitas pelo roteiro do filme, especialmente no começo e no final — as partes mais reticentes do volume, por assim dizer –, mas o longa-metragem alterou apenas o necessário para levar, de maneira orgânica, o personagem por aquele caminho sem modificar o significado que o livro deu a tais passagens.

Belo e com um final emocionante, o livro suscita em nós um espírito desbravador que nos acompanha um bom tempo depois de terminada a leitura; resultado de uma experiência de imersão gigantesca. Poucos livros possuem um nível de contextualização do espaço tão forte e que nos toca tanto como o faz Dersu Uzala. À parte os pequenos impasses anteriormente citados, a leitura é rápida, agradável e cheia de boas surpresas. Aqui, nós também somos um explorador. Pena que nossa missão termine tão rápido.

Dersu Uzala (Rússia, 1923)
Autor: Vladimir Arseniev
Tradução: Aguinaldo Anselmo Franco de Bastos, Lucy Ribeiro de Moura
No Brasil: Editora Veredas, 2011
144 páginas

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