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Crítica | Deserto (2015)

por Ritter Fan
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Duas das explicações mais constantes que ouço para alguém desgostar de algum filme ou série é que a obra “é muito clichê” e/ou “é muito previsível”. E é interessante como esses elementos – o uso de artifícios conhecidos de determinado gênero ou a previsibilidade da trama – pesam no julgamento da maioria das pessoas. No entanto, creio que seja importante ir a um nível acima e indagar se o clichê em si, ou a capacidade de adivinhar a cadeia de acontecimentos é algo intrinsecamente ruim ou se é apenas uma escolha narrativa para que seja possível construir uma história ao redor.

Deserto, filme franco-mexicano lançado no Festival de Toronto de 2015 e que foi o candidato do México não selecionado pela Academia para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2017, é uma boa plataforma para um estudo dessa natureza. Afinal, o filme parte de uma premissa simples, usada um sem-número de vezes em filmes de horror, suspense e thrillers em geral: a caçada impiedosa a um grupo de pessoas que têm que tentar sobreviver a todo o custo. O que muda radicalmente é o cenário. Nada de uma casa à beira de um lago, nada de uma mansão misteriosa, nada de um ambiente urbano decadente, nada de um assassino imortal. Aqui, a pegada é mais realista, partindo de uma crítica sócio-política para construir um filme que, porém, não tem pretensões maiores do que ser um suspense eficiente.

E que pegada realista é essa? Simples. A perigosa travessia do México para os Estados Unidos em região completamente desértica e, portanto, inóspita, com apenas uma cerca de arame farpado na divisa entre os países. Nesse cenário desolado, um grupo de mexicanos faz seu cruzamento a pé com bastante tranquilidade, até terem que encarar um psicopata travestido de nacionalista (com direito à bandeira dos Confederados e bourbon sendo bebido a goladas direto da garrafa) que tem como hobby caçar e matar qualquer imigrante ilegal que ousar por os pés em seu país.

Dando rosto aos dois lados, temos Gael García Bernal como um pai que tenta voltar ao seu filho depois de ser deportado dos EUA e Jeffrey Dean Morgan como o implacável caçador. Os dois atores estão bem, mas, ao mesmo tempo, eles se arriscam bastante ao sucessivas vezes darem à luz a personagens bastante parecidos uns com os outros, Bernal com sua interpretação humilde, calada e sofredora e Morgan com seu papel único de louco furioso. Aliás, no caso de Morgan, Deserto poderia muito facilmente servir de uma origem para seu Negan, de The Walking Dead, um Negan Begins, diria, tamanha a semelhança entre os personagens. No entanto, apenas as duas escalações já estabelecem de antemão os tipos de personagens em oposição aqui, claramente funcionando como o primeiro grande elemento que poderia ser classificado como clichê além de, claro, a premissa de perseguição mortal.

O restante do grupo de mexicanos é, como se pode esperar, bucha de canhão para permitir que o filme chegue próximo da duração regulamentar de 90 minutos, o que também abre a oportunidade para Jonas Cuarón (filho de Alfonso Cuarón) trabalhar bem sua câmera tanto em planos abertos quanto fechados – cortesia da fotografia naturalista e inclemente de Damian Garcia -, combinados em uma montagem (também de Cuarón) que trabalha bem o suspense e cria a urgência da fita, com mortes violentas já em seu primeiro terço. O espectador sabe de antemão exatamente quem chegará na reta final e isso Cuarón, que também co-escreveu o roteiro, nem sequer procura esconder com o estabelecimento claro de um rapport inicial entre o personagem de Bernal e outro imigrante ilegal.

Em outras palavras, o filme é sim uma sucessão de clichês que vão desde a premissa, passando pelo elenco e chegando até mesmo na relação entre os personagens, com todos aqueles momentos clássicos de suspense que não enganarão ninguém que seja um pouco mais calejado cinematograficamente. Mas a grande verdade é que o somatório de Deserto é positivo, pois Cuarón, em apenas seu segundo longa, põe em funcionamento uma engrenagem bem azeitada, lógica e com raízes em um bom realismo que não transforma ninguém em super-herói ou o vilão em um ser fora deste mundo. Se há algum personagem incomum e realmente especial no filme, este é o magnífico cachorro Tracker, usado como rastreador e arma pelo caçador, pois o animal surpreende com sua agilidade, obediência e sua perfeita integração à estrutura do filme, em um belo trabalho de adestramento, ainda que, mais uma vez, seja perfeitamente óbvio o que acaba acontecendo com ele.

Além disso, convenhamos que a exigência de “surpresas” é algo complicado nos dias de hoje em que a sana investigativa de fãs descobrem cada detalhe de seus futuros filmes favoritos meses antes de eles serem lançados. Além disso, poderia muito facilmente afirmar que esperar surpresas e reviravoltas brilhantes é tão lugar-comum hoje em dia que, quando elas acontecem, o impacto é reduzido, quase que se tornando uma obrigação do cineasta. Em Deserto, Cuarón não se prende a essas amarras e simplesmente faz seu pequeno e nada ambicioso filme de suspense que tem no ambiente do título um de seus personagens mais mortais.

Deserto não surpreenderá ninguém, mas servirá de ótimo divertimento passageiro com uma pitada de crítica social para justificar um sub-texto abaixo de sua superfície básica. Um belo exemplar de direção, montagem, uso de trilha sonora e com um elenco divertido – especialmente o canino – o breve filme cumpre sua função com louvor e mostra que clichê é como aquele ingrediente banal que todo mundo usa em suas receitas, mas que somente alguns conseguem criar pratos realmente saborosos.

Deserto (Desierto, México/França – 2015)
Direção: Jonás Cuarón
Roteiro: Jonás Cuarón, Mateo Garcia
Elenco: Gael García Bernal, Jeffrey Dean Morgan, Alondra Hidalgo, Diego Cataño, Marco Pérez, David Peralta Arreola, Óscar Flores Guerrero,  Erik Vázquez, Lew Temple
Duração: 88 min.

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