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Crítica | Deus e o Diabo na Terra do Sol

por Ritter Fan
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É impressionante – e triste – constatar que as críticas feitas em Deus e o Diabo na Terra do Sol há 50 anos (o filme foi lançado menos de um mês antes do golpe militar) persistem ainda no Brasil. Glauber Rocha, em seu segundo longa metragem, cria talvez o símbolo máximo do Cinema Novo, movimento artístico brasileiro que tenta desatar as rédeas da grande produção e embarcar em caminho análogo à Nouvelle Vague francesa ou ao Neo-realismo italiano.

Olhando o Brasil a partir do Brasil, de forma endógena e intimista, Rocha nos faz passear pela miséria absoluta representada por Manuel (Geraldo Del Rey), um vaqueiro nordestino que, em desentendimento com um coronel para quem trabalha, acaba matando-o e tem que fugir com sua mulher Rosa (Yoná Magalhães, belíssima a ponto de destoar do resto do filme). Sua fuga o coloca na trilha de Sebastião (Lídio Silva), um pregador cuja analogia com Antonio Conselheiro o diretor e roteirista não esconde, do matador e representante das forças controladoras do Estado e da Igreja Antonio das Mortes (Maurício do Valle, imponente e inesquecível) e, finalmente, de Corisco (Othon Bastos, em atuação irretocável), ex-tenente de Lampião, agora em bando próprio, mas logo após a morte de seu amigo e mentor.

Apesar de Manuel ser um personagem efetivo na narrativa, o tom documental da fita, ajudado por uma fotografia granulada, com iluminação natural e que faz uso de muito extras não atores, empresta a Manuel muito mais a função de um observador. Ele segue o fluxo e está sempre presente em momentos cruciais de uma espiral decadente que acaba simbolizando o nordeste brasileiro e, em última análise, o país como um todo. Seu desespero é palpável e, logo no começo da projeção, ele já é alguém sem esperanças, entregando-se ao desespero. Sua esposa sabe que eles não têm saída, mesmo que Manuel insista que conseguirá trocar duas vacas por um terreno próprio (não é esse, ainda, o sonho de grande parte da população do país?). Evidente que o que Rosa prevê acontece e é a partir da fuga dos dois que a qualidade de observador de Manuel fica mais destacada.

Vejam por exemplo a figura de Sebastião, representando o fervor religioso, o fundamentalismo mesmo. Nem ali o povo encontra consolo, pois a entrega à esperança de se chegar à Terra Prometida (o mar) e as palavras rasas e enganosas que prometem que os ricos ficarão pobres e os pobres ricos (o sertão vai virar mar!) são só isso mesmo, palavras ao vento. Assim como o povo, Manuel se entrega a essa esperança, com Rosa sempre servindo de âncora a seus arroubos de “insanidade”, mas o que Manuel testemunha e participa é de um sacrifício primal, daqueles que retiram do símbolo de esperança a clareza que antes o espectador tinha. Se o sertão vai virar mar, o religioso vira assassino. Mas a Igreja – essa mesmo com “I” maiúsculo, já havia se tornado assassina, quando antes paga 600 contos para Antonio das Mortes acabar com a revolução dos infiéis, assim como em Canudos.

E por esse caminho sem volta e sem esperança caminha Manuel, sempre seguido de sua bela esposa, com cabelos esvoaçantes e rosto sério, que arrancam de nós, espectadores, o mergulho no sertão que a obra se propõe, talvez nos lembrando propositalmente de uma vida que poderia ser, mas que nunca será. Chegamos a Corisco, completamente enlouquecido e enfurecido pela morte de Lampião e Maria Bonita, pronto para se vingar, como efetivamente faz, mas para que mesmo? Manuel o segue, Manuel novamente participa, ganha o apelido de Satanás – merecido ou não? – e Manuel tenta conciliar o que é com o que precisa ser. Sua esposa novamente servindo como o fiel da balança.

Deus e o Diabo na Terra do Sol é uma viagem lírica pela realidade brasileira da época que ecoa fortemente nos dias de hoje, em algumas circunstâncias ainda pior do que o retrato de Glauber Rocha. Somos embalados pela música clássica brasileira por excelência – Villa-Lobos – além de cordéis compostos pelo próprio Rocha e que funcionam como um coro grego às vezes, ou como reiteração dos acontecimentos por outras vezes, ainda que acabe sendo redundante em seu objetivo, já que a trama e a mensagem são claras como o sol que seca a terra em que Deus e o Diabo se digladiam.

Não é um fita fácil de se ver, pois o mote que permeava o Cinema Novo – “câmera na mão e ideia na cabeça” – gera muitos momentos de improviso e cenas de ação teatrais, mas que funcionam dentro de seu contexto. Não precisamos de efeitos especiais modernos para apreciar a perfeita fotografia de fortíssimo contraste de Waldemar Lima ou a montagem quase experimental às vezes comandada por Rafael Valverde sob a batuta de Rocha. É estranho, mas é belo. É sujo, mas de uma limpeza incrível. A mixagem e edição de som é que sofrem muito, com redublagens que estão deslocadas no espaço cenográfico (reparem, por exemplo, a cena em que Antonio das Mortes aparece pela primeira vez, sentado ao fundo da sala, mas com sua voz em primeiro plano). Um preço talvez pequeno a pagar, mas que pode dificultar a apreciação do resultado final por um espectador menos atento e cuidadoso, que saiba o que está procurando.

Festejado em Cannes, onde foi indicado para a Palma de Ouro, e também em diversos festivais internacionais, Deus e o Diabo na Terra do Sol é um pedaço da história cinematográfica brasileira e um alerta para a história do país que não pareceu ter evoluído tanto assim nos últimos 50 anos. O sertão ainda não virou mar e Antonio das Mortes ainda paira.

Deus e o Diabo na Terra do Sol (Brasil, 1964)
Direção: Glauber Rocha
Roteiro: Glauber Rocha
Elenco: Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Othon Bastos, Maurício do Valle, Lídio Silva, Sonia dos Humildes, João Gama, Antônio Pinto, Mílton Rosa, Roque Santos
Duração: 120 min.

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