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Crítica | Doctor Who: Morrendo ao Sol, de Jon de Burgh Miller

por Rafael Lima
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Equipe: 2º Doutor, Ben, Polly.
Espaço: Los Angeles
Tempo: 1947

O culto às celebridades existe desde a criação da mídia impressa, e ganhou ainda mais força durante o século XX. Alguém famoso (independente da razão) podem (e na maioria das vezes tem) muito mais influência sobre a população do que líderes políticos ou religiosos. O mundo das celebridades também costuma esconder os seus aspectos mais sombrios, vide a onda de escândalos iniciada com o caso Harvey Weinstein. Somando-se isso ao fato de que a internet facilitou o surgimento de “famosos” (como os Digital Influencers), creio poder dizer que Morrendo ao Sol, de Jon de Burgh Miller seja mais relevante agora do que quando foi publicado em 2001.

A história se passa na Los Angeles de 1947, onde Ben e Polly desfrutam de um tempo tranquilo em um hotel da cidade, enquanto o 2º Doutor tenta entrar em contato com um velho amigo da indústria cinematográfica, só para descobrir que ele foi assassinado. Embora a polícia pareça convencida que o jovem delinquente Robert Chate seja o culpado, o Time Lord não parece tão convencido. Ao mesmo tempo, Hollywood se prepara para o lançamento do filme Morrendo ao Sol, que segundo rumores, mudaria a indústria para sempre. Mas as investigações do Doutor o levam a acreditar que o novo filme do diretor Leonard De Sande seja muito mais do que aparenta.

Para os temas que o autor se propõe abordar, havia poucos cenários mais propícios e pitorescos do que a Hollywood da Era de Ouro, que também se apresenta um ambiente curioso pra situar uma aventura da versão despojada e anárquica do Doutor de Patrick Troughton, mas que funciona muito bem, pois a aparente inocência com que o Segundo Doutor opera cria um contraste perfeito com o mundo predatório dos grandes estúdios de cinema. Miller merece elogios pelas camadas que concede à ambientação de sua história, onde o glamour de Hollywood convive com um universo mais sombrio, habitado por policiais de moral duvidosa, mafiosos e, é claro, produtores abusivos.

O autor utiliza o romance para prestar uma homenagem à literatura Noir através da subtrama de Robert Chate, o marginal que aceita localizar uma atriz desaparecida (de quem é grande fã) e acaba acusado por um crime que não cometeu. Miller é inteligente ao utilizar os clichês do Noir como o homem caído em desgraça, e a Femme Fatale, de maneira articulada com as temáticas da trama e com o próprio contexto de ficção cientifica que cerca Doctor Who. O livro não poupa críticas à indústria do cinema e, já nas primeiras páginas, mostra Polly enfrentando os avanços de um poderoso produtor querendo “torná-la uma estrela”. De forma rápida, mas contundente, o livro também faz comentários sobre como atores muitas vezes acabam não tendo o seu trabalho reconhecido em Hollywood por questões que fogem do âmbito artístico. Mas o interesse de Miller está no fascínio que os famosos e a própria fama exercem no ser humano.

A fama é metaforizada através dos Selyoids (o trocadilho com a palavra “celuloide” é intencional), alienígenas microscópicos que sobreviveram na forma de uma sopa primordial, e que realizam simbiose com humanos (ou formas de luz) quando eles ingerem a tal sopa. Mas os Selyoids não são retratados como seres malignos, pelo menos não de forma maniqueísta, mesmo que tenhamos um antagonista claro na figura do charmoso George De Sande, pois os Selyoids nos amam, e querem nos fazer melhores. As criaturas trazem um conceito muito interessante por si só, já que através de controle empático são capazes de realçar as características mais fortes de seus hospedeiros aos olhos dos outros, ou quando inseridos nas películas dos filmes, tornar as projeções absolutamente atraentes (ou aterrorizantes), pois as pessoas veem nelas o que querem ver.

A grande sacada de Miller é como o mundo oferecido pelos Selyoids se torna sedutor para os personagens, já que enquanto o Doutor tem a certeza que as criaturas nos levaram á um futuro de escravidão, seus Companions (Polly em especial) não parecem tão certos. Isso não chega a se tornar um dilema, pois a obra deixa claro que a influência dos Selyoids pode sim ser usada para escravizar. Em um primeiro momento, poderíamos taxar Ben e (principalmente) Polly como idiotas, mas creio que na verdade eles estão sendo humanos, ao vislumbrarem um mundo onde sentimentos de insegurança não existam. O Doutor (um alienígena) é praticamente o único personagem a não sofrer influência dos Selyoids durante a trama, justamente por que adorar famosos (“amar” figuras distantes) ou adorar a própria fama é uma característica bem humana, na qual o Doutor (este em especial) não está nem um pouco interessado.

A narrativa é ágil e consegue circular entre as subtramas de forma muito competente, com ação e tensão constantes, mas com momentos de respiro muito bem colocados. Várias passagens merecem destaque, como a sequência em que Ben e o Doutor tentam se infiltrar em uma sociedade secreta, e o clímax situado nas colinas de Los Angeles, que muito apropriadamente, é altamente cinematográfico.

O livro traz uma série de personagens originais que conseguem atrair a atenção do leitor. O diretor George De Sande, grande antagonista da obra, surge como um vilão sutil e charmoso, cujos modos finos e galantes o tornam um representante perfeito para os Selyoids, e um adversário interessante para o desapegado Segundo Doutor. Já Robert Chate nos é apresentado como o típico anti-herói Noir, mas que ganha características que o humanizam além do estereótipo ao longo da narrativa. Destaco ainda o personagem do Capitão de polícia Charles Wallis, um representante da paranoia anticomunista que ganharia mais força nos Estados Unidos nos anos seguintes e que se torna protagonista tanto de momentos mais dramáticos, por sua relação conturbada com seu filho adotivo Chate, quanto de momentos cômicos, já que chega um momento que o policial preferiria ver Stalin na sua frente ao Doutor, que claro, insiste em aparecer diante do policial, cheio de perguntas e insinuações.

O Segundo Doutor está muito bem retratado, com a energia e a astúcia desta encarnação do Senhor do Tempo muito bem transposta para as páginas. O Doutor atua neste livro com a sua clássica estratégia de fazer-se de bobo para que seus inimigos o subestimem, o que gera passagens hilárias. Mesmo que sirva como maior alívio cômico da obra, o Doutor está longe de ser retratado como um palhaço e está extremamente determinado a deter a ameaça representada por George De Sande e sua seita, tornando-se cada vez mais desesperado à medida em que a influência dos Selyoids cresce em Los Angeles.

Embora possa se dizer que pelo menos um terço da história é narrada do ponto de vista de Ben, Miller não parece muito interessado em explorar o Companion, que funciona mais como um observador das ações do Doutor na trama. Polly já é um pouco melhor explorada, ao se ver tentada pela fama, e o poder que ela traz. O autor apresenta as inseguranças da Companion a partir do momento em que ela tem a mente controlada para tentar matar o Doutor, ainda no começo do livro, uma violação que remete a jovem aos eventos de The War Machines, onde ela também se viu como um fantoche sob influência do super computador WOTAN. Sua busca por autocontrole e autoafirmação são o que a levam a caminhos que podem colocá-la na direção oposta. É um arco dramático muito interessante, embora eu tenha ficado com a impressão que o autor tenha tido problemas em fechá-lo.

Apesar de ter tecido muitos elogios ao livro, sinto que o autor poderia ter explorado melhor o cenário da história em pequenos detalhes que teriam tornado a experiência ainda mais rica, como a adaptação dos Companions às roupas da época, ou mesmo citações a filmes e personalidades deste período de Hollywood. Por outro lado, talvez pela obra ser tão pouco elogiosa a máquina Hollywoodiana, o autor tenha preferido omitir tais referências, mas creio que teriam tornado a experiência bem mais divertida.

Apesar de pequenos deslizes, Morrendo ao Sol é um ótimo romance de Doctor Who (mais um a retratar as aventuras iniciais desta encarnação antes da chegada de Jamie). É um livro que trata de assuntos relevantes sem perder o senso de diversão, capta bem o período da série em que está inserindo, ao mesmo tempo em que traz algo novo, e traz um Segundo Doutor fazendo o que faz de melhor, enquanto enfrenta sociedades secretas e o poderio dos grandes estúdios de cinema. Em resumo, diversão garantida.

Doctor Who: Morrendo ao Sol (Dying in The Sun)- Reino Unido. 01 de Outubro de 2001.
Autor: Jon de Burgh Miller
BBC Past Doctor Adventures # 47
Publicação: BBC Books.
281 Páginas.

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