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Crítica | Doctor Who: O Legado dos Daleks, de John Peel

por Rafael Lima
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Equipe: 8º Doutor, Susan.
Espaço: Londres
Tempo: 2199

Não se pode negar que John Peel é um autor de ideias ambiciosas e até controversas, uma vez que não tem pudor nenhum em mexer com o cânone da série, como já havia demonstrado no romance Timewyrm: Gênese e, de forma mais acentuada, em A Guerra dos Daleks. Já com este O Legado dos Daleks, Peel não só se propõe a promover esperado reencontro entre o Doutor e sua neta Susan em uma sequência direta do clássico The Dalek Invasion Of Earth, como também apresenta a história de como o Mestre interpretado por Roger Delgado se tornou a versão cadavérica vivida por Peter Pratt no arco The Deadly Assassin.

A trama acompanha o Oitavo Doutor em busca de sua companheira perdida, Sam Jones, de quem ele foi separado em uma aventura anterior. Enquanto tenta localizar Sam, o Doutor recebe um pedido de ajuda telepático vindo de sua neta Susan, que excetuando um breve encontro durante os eventos de The Five Doctors, ele não via desde que a deixou na Terra pós-invasão Dalek, durante a sua primeira encarnação. Mas ao se materializar na Londres de 2199, trinta anos após a derrota dos Daleks em The Dalek Invasion Of Earth, o Doutor encontra uma Inglaterra que não conseguiu se pacificar totalmente e ainda descobre que Susan desapareceu. Ao mesmo tempo, Susan se depara com um maquiavélico esquema que visa inflamar as tensões existentes entre as facções que surgiram após a derrota dos Daleks, podendo provocar uma nova guerra na Europa.

O Legado dos Daleks é o que eu chamo de um “livro de extremos”. Quando o autor acerta, ele acerta em cheio, deixando o leitor com um sorriso de orelha a orelha. Mas quando erra, é um erro dos feios. Infelizmente, o número de erros acaba superando os acertos aqui, resultando em um livro bastante irregular. Peel mexe com coisas interessantes como viajantes do tempo se encontrando fora de sincronia, sociedades pós-apocalípticas e paradoxos temporais, além de lidar com dois momentos que deveriam ser icônicos na mitologia da série, o reencontro com Susan e a regeneração do Mestre, mas o romance falha em gerenciar todos esses ingredientes em uma trama satisfatória.

Felizmente não se pode negar que o autor é extremamente eficiente na hora de construir o universo em que a sua narrativa está situada. O mundo pós-invasão Dalek imaginado por Peel é uma mistura instigante de mundo contemporâneo e Europa feudal, com direito a senhores e cavaleiros de armadura. O autor consegue articular estes diferentes ambientes em um mundo coeso, que realmente intriga o leitor, sendo a construção desse cenário uma das melhores coisas do livro. A Terra de O Legado dos Daleks é um lugar brutal e sem esperança onde apesar de os Daleks terem partido há trinta anos, ainda habitam o imaginário da população como verdadeiros bichos-papões — mesmo da geração que não viveu a invasão.

O problema é a forma como Peel escolhe desenvolver a narrativa do romance. A ideia de que os humanos entraram em uma disputa por poder depois dos eventos de The Dalek Invasion Of Earth é muito atraente e, por si só, já renderia uma excelente história. Infelizmente, os núcleos não parecem se conectar de forma orgânica e os pontos de virada da trama muitas vezes soam forçados. A escolha por ocultar a identidade do Mestre até mais da metade da narrativa soa bastante equivocada também. O misterioso Sr. Estro, conselheiro do tirano local Lord Haldoran, que tem lhe fornecido tecnologia alienígena, tem todas as características que esperamos do clássico vilão. Chega a ser cômico quando a história apresenta a revelação de Estro como o Mestre, como algo surpreendente.

A inserção tardia de um grupo de Daleks durante o terceiro ato também soa absolutamente desnecessária, como se Peel tivesse sentido que não podia escrever um livro com a palavra “Daleks” no título sem que os monstros de Skaro aparecessem de fato, o que é uma pena, pois a presença invisível dos Daleks através dos traumas de guerra estava funcionando muito bem. Por outro lado, o romance tem um bom ritmo. Não chega a ser uma leitura magnética, mas nunca se torna enfadonho. A ação e os diálogos são bem escritos. Por outro lado, a narrativa é falha, trazendo algumas passagens realmente constrangedoras como “O sangue dele sairia de sua camisa, mas dificilmente sairia de sua memória”.

A construção e caracterização dos personagens de Peel neste romance também acabam por ser um pouco irregular. Embora o Doutor pareça ensaiar um conflito interessante ao se penitenciar por nunca ter cumprido a promessa que fez à neta, tal conflito realmente nunca ganha força. Além disso, o autor não consegue capturar nas páginas a versão de Paul McGann para o Doutor. O que temos é uma versão genérica, com as características básicas compartilhadas por praticamente todas as encarnações do Time Lord, mas a voz particular do Oitavo Doutor raramente surge no romance. O Mestre sofre de problema semelhante. Esta deveria ser a derradeira história da versão de Roger Delgado, mas não se identifica nas páginas o Mestre de Delgado, pois o Time Lord renegado que surge aqui parece lembrar muito mais a encarnação vivida por Anthony Ainley em seus momentos mais cartunescos.

Susan acaba por ser a melhor personagem do livro. Muito de suas características estabelecidas na série estão presentes, mas esta já é uma mulher trinta anos mais experiente. Em outras resenhas, comentei como no Universo Expandido os autores passaram a dar destaque à solidão da jovem Time Lady como uma característica importante da personagem, algo que a série de TV apenas sugeria. Peel volta a abordar tal questão, mas por um viés diferente. O Primeiro Doutor deixou Susan para trás para que ela tivesse um lar e pudesse de fato pertencer a algum lugar. Mas não parou pra pensar que para um Time Lord, isso é temporário. Trinta anos depois, David, o marido de Susan que conhecemos em The Dalek Invasion Of Earth, já é um homem de mais de cinquenta anos que começa a sentir o peso da idade. Susan, entretanto, parece não ter envelhecido mais do que dois ou três anos desde que chegou aquele mundo com o avô, Ian e Barbara. Ela inclusive já parece mais jovem que seus três filhos adotivos (Ian, Barbara e David Jr). A neta do Doutor percebe que isso significa que terá que assistir as pessoas que ama envelhecerem e morrerem. Isso traz todo um novo significado para o reencontro entre o Doutor e Susan. Infelizmente ai mora outro problema do livro. Toda a história foi construída nesta direção mas no fim, o autor nos nega o reencontro, com Susan e o Doutor tendo apenas um breve vislumbre um do outro, o que acaba sendo um amargo anticlímax.

Os personagens restantes são rasos, na melhor das hipóteses. Como a então companheira oficial do Oitavo Doutor, Sam Jones, está desaparecida, o autor cria Donna, uma jovem cavaleira que acaba desempenhando o papel de companion. A personagem até tem o seu charme, mas Peel parece acreditar que encher o passado da moça de traumas vai lhe dar alguma profundidade, o que não é o caso. Apesar da ambição e de trazer alguns conceitos instigantes (três Time Lords completamente fora de sincronia, por exemplo) O Legado dos Daleks nunca chega perto de seus objetivos. É uma leitura rápida e pode até mesmo entreter, mas está longe de ser realmente um bom livro. O retorno de Susan e a regeneração do Mestre original mereciam uma história bem melhor.

Obs: A Big Finish posteriormente produziria suas próprias versões do encontro entre Susan e o Oitavo Doutor, e da regeneração fracassada do Mestre de Roger Delgado.

O Legado dos Daleks (Legacy Of The Daleks) — Reino Unido, 6 de Abril de 1998.
BBC Eighth Doctor Adventures #10
Autor:
John Peel
Publicação: BBC Books
246 Páginas.

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