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Crítica | Dodeskaden – O Caminho da Vida

por Luiz Santiago
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Embora a primeira produção em cores de Akira Kurosawa tenha sido um documentário para a TV chamado Canção do Cavalo, foi O Caminho da Vida o seu primeiro expoente cinematográfico colorido. Na época, o cineasta se encontrava em maus lençóis quanto ao financiamento de seus projetos, o que resultou para ele em grande esgotamento físico e mental. No período entre o lançamento de O Barba Ruiva (1965) e Canção do Cavalo (1970, meses antes de Dodeskaden) Kurosawa protagonizou uma epopeia de reuniões e apresentação de projetos para ver se conseguia financiamento para suas obras. Resumindo: ninguém no Japão queria investir dinheiro em um filme de Kurosawa, por mais surreal que isso possa parecer. Em 1966, uma aproximação internacional abriu as portas para a produção de um roteiro do Mestre, escrito em parceria com Ryûzô KikushimaHideo Oguni. As filmagens foram iniciadas mas canceladas ainda nos primeiros estágios, por diversos motivos: agenda, tempestades de neve durante as filmagens e falta de comunicação entre os representantes de Kurosawa e a produtora, levando a divergências criativas. Anos depois, este mesmo roteiro seria reformulado e filmado pelo russo Andrei Konchalovsky, lançado como Expresso Para o Inferno (1985).

Ainda pelejando, mas sem encontrar investidores em seu país, Kurosawa assinou um contrato com a Twentieth Century Fox para dirigir as sequências japonesas de Tora! Tora! Tora! (1970), algo que tornou o ano de 1968 um verdadeiro inferno para o diretor, que não encontrou nada do que tinha combinado com a produção, tornando a sua já famosa teimosia e exigência algo que o estúdio americano não sabia como lidar, o que acabou com a demissão do diretor em janeiro de 1969, com a Fox alegando “fraqueza mental” por parte do Mestre japonês, que fez questão de levantar o assunto em todas as entrevistas que deu na época, negando veementemente essa justificativa. Ele estava perfeitamente são e querendo trabalhar, “desde que tivesse meios e ferramentas para tanto“.

Yoichi Matsue, assistente de direção em segunda unidade de Kurosawa (e que já tinha trabalhado com ele em A Fortaleza EscondidaHomem Mau Dorme BemCéu e InfernoO Barba Ruiva) viu o estado em que o diretor se encontrava e tentou salvar Tora! Tora! Tora! a todo custo, mas a Fox já tinha resolvido a voltar com a obra à estaca zero. Kurosawa, que não conseguia ficar sem trabalhar, começou a entrar em um estado de depressão. Foi aí que o próprio Matsue resolveu assumir as rédeas de produção. Após convencer a Toho e com a recém-criada produtora Yonki-no-Kai (um coletivo cinematográfico chamado de Comitê dos Quatro Cavaleiros, formado por Kurosawa, Keisuke Kinoshita, Kon Ichikawa e Masaki Kobayashi, que infelizmente só produziu este filme), assumiu o que viria a ser Dodeskaden – O Caminho da Vida, cujo roteiro, escrito em parceria com Hideo Oguni e Shinobu Hashimoto (baseado na obra de Shûgorô Yamamoto, o mesmo de Sanjuro e Barba Ruiva), se passa em uma favela ou cidade na periferia de Tóquio, um lugar sem nome, estagnado, onde a vida parece uma sucessão de misérias particulares, sem nenhuma perspectiva de mudança. Este, aliás, é considerado o principal motivo para o estrondoso fracasso do filme nas bilheterias, o que tornaria o contato de Kurosawa ainda pior com novos produtores, gatilho que faria com que o já alquebrado cineasta tentasse suicídio um ano depois do lançamento do filme.

Mas O Caminho da Vida é mesmo um Kurosawa diferente, e o primeiro elemento que podemos apontar dessa diferença é o distanciamento notável do diretor em relação ao caráter episódico pelo qual ficou conhecido. A integração exigiu muito da edição de Reiko Kaneko, que precisava trabalhar com um bom número de planos-sequências (de oito a dez minutos) para diferentes indivíduos desse lugar marginalizado, uma sobreposição de crônicas sobre a existência, as dores e uma possível marca de felicidade para os “bichos do depósito de lixo“. O ponto de partida e chegada é o mundo de fantasia de Roku-chan (Yoshitaka Zushi), o “bobo do bonde“, que acredita ser um condutor e vive dirigindo o seu vagão pelo despejo, mantendo um percurso e um cronograma bem definidos, gritando onomatopeias por onde passa. Completando essa tapeçaria, temos o drama de um fabricante de escovas; dois amigos bêbados que vivem trocando de esposas; um indivíduo com um tique nervoso; um velho artesão; um pai e um filho que moram em um carro aos pedaços e constroem uma mansão imaginária; um silencioso homem em uma casa de latão e uma garota que confecciona rosas e tem um pai adotivo bêbado e absolutamente infame.

De imediato nos lembramos de Donzoko – Ralé (1957), mas diferente da adaptação de Kurosawa para a peça de Maksim Górki, O Caminho da Vida não filma todo mundo dentro de um único cenário. A sensação claustrofóbica é a mesma, mas o diretor está claramente mais maduro, tanto em sua exposição técnica, quanto no tratamento da temática mais humana, sofrida e extremamente pessoal, talvez o filme mais pessoal que o diretor assinara até aquele momento de sua carreira. A ausência de estações do ano e os cenários pintados delineiam a sensação teatral do longa, que é constantemente mergulhado em filtros de um espectro de cores específica — um para cada bloco de personagens –, tendo as adições aplaudíveis da direção de arte para a construção de cada habitação, sempre em contraste com a personalidade de seus habitantes. Somam-se a maquiagem ou ausência dela, onde se destaca a angustiante intoxicação alimentar que vemos mudar completamente a face do pai e do filho que constroem a mansão imaginária; e dos figurinos, especialmente para as lavadeiras e a dupla de amigos bêbados e suas esposas, o único suspiro leve e cômico da película.

Na constante fuga da realidade, os habitantes desse lugar esquecido reúnem as inquietações e sofrimentos do Japão e do próprio diretor à época. Notem que os horrores da guerra e o desastre de Hiroshima e Nagasaki aparecem aqui como pontos de criação de um “momento terrível” na História do país, sendo este horror a mais forte conexão que os habitantes têm entre si. E mesmo neste meio vemos diferentes personalidades ganharem destaque na tela, um desfile de bondade e maldade, empatia e rejeição, vida e morte.

Em Dodeskaden temos a junção de humanos falhos e de falhas humanas em um único lugar, como se o diretor quisesse construir uma tese em áudio-visual sobre como e o quanto é possível curar-se quando o meio não favorece em nada. A interação de Roku-chan no decorrer do filme é o único ponto um tantinho problemático do roteiro, mas mesmo nessas aparições, entendemos que a despeito da mensagem de “sofrimento dominante”, o diretor está nos contando uma grandiosa história sobre o coração, sobre a superação, sobre o perdão e a vontade de querer viver, o que claramente aproxima a obra do Budismo de Nitiren, fato dado já na cena de abertura da obra (vocês se perguntaram por quê Roku-chan pede a Buda que torne sua mãe mais inteligente?). É diante dessas diferentes personas e da união pelos horrores da vida que o filme traz à tona a possibilidade de recomeçar. Uma grande realização sobre a colocação de nossas preocupações em perspectiva e do entendimento do que esta vida pode ser, se a gente quiser ou deixar.

Dodeskaden – O Caminho da Vida (Dodesukaden) — Japão, 1970
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Akira Kurosawa, Hideo Oguni, Shinobu Hashimoto (baseado na obra de Shûgorô Yamamoto)
Elenco: Yoshitaka Zushi, Kin Sugai, Toshiyuki Tonomura, Shinsuke Minami, Yûko Kusunoki, Kunie Tanaka, Jitsuko Yoshimura, Hisashi Igawa, Hideko Okiyama, Tatsuo Matsumura, Junzaburô Ban, Kiyoko Tange, Michio Hino, Keiji Furuyama, Tappei Shimokawa, Imari Tsuji, Tomoko Yamazaki, Masahiko Kametani, Akemi Negishi
Duração: 140 min.

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