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Crítica | Domingo Maldito (1971)

por Luiz Santiago
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estrelas 3,5

Considerada a “era do individualismo”, os anos 1970 representaram uma continuação e também crescimento das revoluções nas liberdades individuais que ocorreram na década anterior. Ao mesmo tempo, vieram à tona movimentos de resposta e esses “grupos de libertinos” concentrados na Europa e na América, discursos repressivos e condenadores que enfatizavam a “importância da tradição familiar [cristã] mais os valores morais dos antepassados“, além de forte oposição ao que se chamava de “perdição dos jovens”. Esse tipo de desposta que olha para o passado com o intento de condenar, diminuir, demonizar ou atacar gratuitamente qualquer saída dos eixos de comportamento social tradicional já era esperado e não era a primeira vez na História que acontecia. Mas talvez tenha sido a primeira vez que esse mesmo movimento ganhou como tréplica ainda mais provocações. A arte — cinema, música e literatura, principalmente — seguiu avançando o sinal. Domingo Maldito (1971) é um dos exemplares deste avanço.

Projeto bastante arriscado do diretor britânico John Schlesinger, Domingo Maldito foi o primeiro longa em que o ator Daniel Day-Lewis apareceu, uma experiência que ele diz ter sido “divina”, do ponto de vista de um adolescente de 14 anos que recebe 2 libras para aparecer alguns segundos em um filme, como um vândalo, riscando carros. Mas Domingo Maldito também é conhecido como um filme à frente de seu tempo, inclusive com um tratamento honesto, objetivo e muito bem filmado sobre um triângulo amoroso formado pelo doutor Daniel (Peter Finch), pela divorciada em procura de um novo momento profissional Alex (Glenda Jackson) e pelo artista e pequeno empresário Bob (Murray Head), todos em ótimas interpretações.

Sem esconder ou desconversar o tráfego de um jovem em uma relação aberta com outro homem e uma mulher, a fita causou furor na Grã Bretanha e em algumas cidades dos Estados Unidos. Reportes de pessoas gritando de terror (!) e saindo da sala praticamente correndo quando os personagens de Finch e Head se beijam na tela, não são incomuns. Outros dizem que alguns espectadores resistiram até virem os dois atores semi-nus na cama. Essas reações, sempre esperadas em obras com esta temática (e não, isto não é algo exclusivo dos anos 70; há muita gente que ainda sai do cinema, em pleno século XXI, toda vez que vê na tela qualquer tipo de contato homossexual), serviram para popularizar ainda mais o filme, que teve uma boa resposta da crítica e não fez feio nas bilheterias. Na temporada de premiações, o projeto arrematou 4 indicações ao Oscar (Melhor Ator, Atriz, Diretor e Roteiro), levou para casa o Globo de Ouro de Filme Estrangeiro e 4 BAFTAs, além de outras três indicações.

O fato é que roteirizar e filmar uma obra que, de certa forma, é um estudo social do momento em que apareceu, geralmente chama a atenção das pessoas, se o trabalho for bem realizado. Nós temos a necessidade, a vontade de entender, de expandir horizontes sobre o que se passa em nossos tempos, especialmente se fazemos parte ou estamos próximos aos grupos representados na tela. É exatamente este movimento que chamou para o cinema os espectadores mais distantes para o filme de Schlesinger, obra que, mesmo décadas depois, se mantém atual e inovadora. Não são todos os diretores que conseguem representar variações de sexualidade (e neste filme nós temos três; hetero, homo e bi) sem fazer mímicas com lições de moral ou aderir a alguma “regras de comportamento” para maquiar e supostamente proteger os sentimentos dos envolvidos. Em nenhum momento o roteiro de Domingo Maldito cai nesta armadilha. O personagem de Bob serve como explosão de uma libido aliada a uma alma inquieta, enquanto o homem e a mulher maduros com quem ele se relaciona encarnam facetas históricas e sociais distintas, todavia, chegando ao mesmo patamar de cobranças e reconhecimento da liberdade do outro após pensarem a respeito.

No meio dessas maldições emocionais, expostas em um formato episódico, com dias da semana mostrados na tela para marcar a rotina, a câmera pontualmente inquieta de Schlesinger captura o movimento dos personagens em diversos cenários, chegado aos pontos mais interessantes quando estão em casa. É em uma delas que temos a cena mais bonita do filme, com Bob e Alex nus, na frente da lareira. O plano, a fotografia, o momento, o significado para ambos, tudo ali é de uma imensa beleza.

Nesses espaços internos, o desenho de produção apresenta um trabalho excelente de demonstração do caos sentimental nos personagens mais velhos, do modelo de suas chaves à arrumação da casa e da forma como tentam se comunicar, na maioria das vezes, falhando. A presença de uma central de recados telefônicos, as constantes chamadas, os desencontros e números ocupados são um reflexo (ou um complemento) das relações do filme, que sofrem com más interpretações ou mais-palavras. O curioso é que o roteiro coloca todos sendo muito sinceros, pelo menos a maior parte do tempo, o que torna as pequenas omissões ainda mais impactantes quando vêm à superfície.

Muitos ingredientes da sociedade britânica daquela década aparecem na película através de uma família que, de certa forma, lembra o espírito de filmes em safras de nossa década com olhares para o passado, como A Comunidade (2016) e Capitão Fantástico (2016), porém, apenas no quesito simples de lidar com núcleos humanos com status de família, envolvendo crianças, adolescentes e adultos fora dos padrões morais e até éticos de como se deve reunir e lidar com uma família. Em Domingo Maldito, o fator “liberdade” é ainda mais intenso do que nos outros longas citados, e vejam que esse lado familiar distinto não é o foco da obra e nem tem as melhores sequências da fita, imaginem só.

Um pouco mais lento do que deveria na reta final e com um trabalho não tão interessante nos blocos de apoio para os protagonistas mais velhos — especialmente a sequência do Bar Mitzvá, cuja função de aprofundar a relação distante e complexa de Daniel com a família e todo o aspecto de “estar no armário”, se perdem em meio a questões mais importantes para a obra — podem frustrar um pouco a nossa experiência, mas jamais diminuirá ou anulará a mensagem e temática do filme, que é uma gema de coragem e pioneirismo ao trazer para as telas, em 1971, de maneira aberta e sem disfarces no roteiro, o tipo de relações humanas, sexuais e visão de sociedade quem mesmo décadas depois ainda é um tabu e ainda não conseguem boas representações no cinema.

Domingo Maldito (Sunday Bloody Sunday) — Reino Unido, 1971
Direção: John Schlesinger
Roteiro: Penelope Gilliatt
Elenco: Peter Finch, Glenda Jackson, Murray Head, Peggy Ashcroft, Tony Britton, Maurice Denham, Bessie Love, Vivian Pickles, Frank Windsor, Thomas Baptiste, Daniel Day-Lewis
Duração: 110 min.

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