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Crítica | Dorminhoco

por Luiz Santiago
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Podemos encerrar entre Um Assaltante Bem Trapalhão (1969) e A Última Noite de Boris Grushenko (1975), a primeira fase da carreira de Woody Allen — embora este último filme fuja bastante do estilo piada-piada-piada, tendo em Dostoiévski e na Era Napoleônica a sua base de humor.

Os primeiros filmes de Allen a que nos referimos, (além de Bananas (1971), Tudo o Que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo* E Tinha Medo de Perguntar (1972) e Dorminhoco, de 1973), conservam muito do material e do modo de conduzir um texto vindos de sua pregressa carreira como comediante stand-up. São obras hilárias, muitas vezes surreais, com dezenas de gags inteligentes e levemente preocupados com algo que não seja o riso – talvez, com exceção de Boris Grushenko.

Dorminhoco (1973) é, digamos, um primeiro divisor de águas. Neste filme, observamos uma preocupação estética maior que a dos filmes anteriores – preocupação já aludida em Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo, principalmente na “sequência Antonioni” ou “Italiana”, mas em Dorminhoco essa preocupação não está apenas em um esquete isolado ou num momento específico. Entendemos que a partir dessa obra, Woody Allen alcançou a sua primeira evidência de maturidade estética como cineasta (pontualmente em relação ao cenário) – e que aperfeiçoaria a partir de então, vide o seu filme seguinte.

Dorminhoco conta a história de Miles Monroe (Woody Allen), que, preservado por um processo criogênico, acorda 200 anos depois de ter dado entrada em um hospital para um simples processo cirúrgico. Na sociedade visivelmente fascista onde acorda, Miles conhece e se apaixona pela poetisa Luna (Diane Keaton), a quem é apresentado confundidamente como um robô doméstico. O governo então dá caça ao “forasteiro de outro tempo” ao passo que um grupo de resistência marxista prepara a revolução contra o poder instituído. Miles e Luna, depois de diversos obstáculos da parte dela, que era “escritora oficial”, estão a serviço da revolução e pretendem acabar com o único órgão ainda existente do ditador do país: o nariz.

O texto, assinado por Allen e Marshall Brickman, apresenta uma hilária e nonsense relação com a História Contemporânea, principalmente com Karl Marx e o conceito de “Revolução Social” (tema já abordado pelo diretor em Bananas). Alguns elementos que são recorrentes nos filmes do diretor já se apresentam aqui: a contestação da fé em Deus, o descrédito na política e a intricada relação com o amor.

As situações equilibram ironia, conceitos intelectuais e sarcasmo. O diretor toma um cuidado especial na apresentação dos personagens principais: ele, como Miles, vai aparecendo aos poucos, ao passo que os médicos retiram o papel alumínio que lhe cobria o rosto. Quando ainda coberto, já percebemos o contorno dos óculos e para quem o conhece, já está definida a figura de dali sairá. Diane Keaton, como Luna, aparece pela primeira vez com uma máscara facial verde que lhe cobre todo o rosto, e contrasta com a toalha clara amarrada na cabeça e a roupa branca que usa, apresentações fortes e marcantes que já indicavam características dos dois personagens.

A atuação de Allen é o ponto central do filme, uma espécie de motor-gerador que impulsiona todos ao seu redor. Diane Keaton se encaixa perfeitamente nesse mundo woodyano e toda sua experiência no teatro é vista na tela com a harmonia com que conduz Luna através da trama. Vale destacar as diferentes personalidades que ela representa: a poeta fascista, a foragida, a revolucionária, a apaixonada.

A música de Dorminhoco é uma surpresa, em se tratando de filmes futuristas. Nos anos 1970, era tradição usar um sintetizador para os temas principais em enredos que se passassem muitos anos no futuro. Woody Allen, como sempre, preferiu o jazz. E muito particularmente “o seu” jazz. A música da película é composta e tocada pelo próprio Allen e sua banda, The Preservation Hall Jazz Band, acompanhados pela The New Orleans Funeral Ragtime Orchestra. O resultado é de um clima chapliniano que em alguns momentos (dada a “seriedade” da cena) chega a incomodar de tão alegre ou apavorante. Atenção especial para os incríveis solos de clarinete e trompete.

Contando com montagem de Ralph Rosemblun (colaborador até Interiores, 1978) e com um aperfeiçoamento em seu modo de dirigir filmes, Allen consegue um produto final que agrada a públicos diversos (porque é diverso) e faz lembrar a atmosfera de algumas boas comédias do primeiro cinema. O filme é uma sátira ao mundo mecanizado e a acomodação das pessoas frente à tecnologia, que as domina e deserotiza (o sexo é feito em uma máquina, uma pequena cabine, e o prazer é tido através de um orbe metálico).

Dorminhoco não peca por excessos, nem por falta. É um excelente relato cômico em medida certa sobre adaptação (ou não) de certos humanos às máquinas e à era robotizada – uma cutucada do diretor na tecnologia. A fita foi um grande sucesso de público e se estabeleceu como um marco, tanto estético quanto conceitual, na carreira de Woody Allen.

O Dorminhoco (Sleeper) – EUA, 1973
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen e Marshall Brickman
Elenco: Woody Allen, Diane Keaton, John Beck, Mary Gregory, Don Keefer, John McLiam, Bartlett Robinson, Chris Forbes, Mews Small, Peter Hobbs, Susan Miller, Lou Picetti
Duração: 90min.

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