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Crítica | Doutor Sono, de Stephen King

por Ritter Fan
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estrelas 4

Minha relação pessoal com as obras de Stephen King é claudicante. Gosto muito de seus clássicos, como Carrie, a Estranha, A Hora do Vampiro e O Iluminado, além de alguns menos clássicos como O Cemitério e A Incendiária. Outros, no entanto, também considerados clássicos, me desapontaram, como It – A Coisa e A Dança da Morte. Mesmo sua magnus opus, a saga A Torre Negra, que desbravei corajosamente, me deixou indagando o porquê da adoração dos fãs por Roland Deschain e sua turma.

Assim, por muito tempo, larguei Stephen King de lado. Quando soube, porém, que o autor faria uma continuação de talvez seu super-clássico, O Iluminado, fiquei receoso e apreensivo, mas também muito curioso. Esperei a versão brasileira e a Suma de Letras (Objetiva) a lançou em 2014, com tradução de Roberto Grey.

Voltei, então, a me enfronhar no universo de King e, posso adiantar, não me arrependi.

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A primeira dúvida que muitos terão, dúvida essa justíssima, é: será necessário ler O Iluminado para entender Doutor Sono? Antes mesmo de ler já suspeitava da resposta, mas pude rapidamente confirmar: Stephen King não tem nada de bobo e sabe que é muito possível que a geração mais nova só conheça O Iluminado – se conhecer – por intermédio da fantástica versão cinematográfica de Stanley Kubrick. Mas O Iluminado – o filme – é bem diferente de O Iluminado – o livro – e, apesar de o espírito ter sido mantido na visão kubrickiana (muita gente discorda dessa afirmação, porém), o próprio King é vocalmente desgostoso em relação ao filme, algo que ele deixa novamente claro na “Nota do Autor” ao final de Doutor Sono.

Da mesma forma, King sabia que poucos leitores voltariam ao original, que é sua terceira obra, lançada originalmente em 1977, para se preparar para a continuação. Com isso em mente, ele fez o melhor de dois mundos e abordou o que aconteceu com o personagem principal de O Iluminado, o menino Danny Torrance, ao longo das décadas subsequentes ao horror que ele testemunhou no Hotel Overlook. Dessa forma orgânica e inteligentemente King relembra (para quem leu) ou conta (para quem não leu) os principais eventos de sua obra original.

Dito isto, claro, O Iluminado é também uma grande obra do autor e vale procurá-la (também lançado pela Suma de Letras) para ler em preparação a Doutor Sono. Quem não quiser se dar ao trabalho, porém, não ficará de forma alguma perdido ao encarar diretamente a continuação. Cortesia de Stephen King, que parece ter voltado à sua forma.

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O livro é dividido em quatro partes e, em relativamente poucas páginas (compare só com outras obras do autor), aprendemos muito sobre Danny, tanto seu passado no Hotel Overlook como os eventos mais marcantes de sua vida posterior. Lendo a sinopse oficial não temos exatamente essa ideia de Doutor Sono, mas é justamente a curiosidade sobre Danny e a esperta forma como King nos conta sua história que enriquece a obra muito além de sua premissa básica.

Apesar de começar literalmente logo após os eventos de O Iluminado, King segue pulando anos e, com isso, vemos um instigante e aterrador quadro geral da transformação do menino Danny Torrance no homem Dan Torrance. Há elementos de sobrenatural, como se espera de alguém que é “iluminado”, com poderes especiais, mas o que prende o leitor é seu lado humano, em uma trágica espiral que reflete a vida de seu pai, Jack Torrance (“tal pai, tal filho”!).

Em paralelo, mas com muito menos ênfase, King vai aos poucos nos apresentando a um misterioso grupo auto-intitulado o Verdadeiro Nó, que caça “iluminados” pelos EUA em seus trailers imensos, posando de turistas americanos comuns cruzando o país. Mas de comuns seus membros não têm nada e sem pressa o leitor vai aprendendo os detalhes sobre o modo de vida deles, a partir do ponto de vista da bela e poderosa Rose, a Cartola. Um dos grandes dons do escritor é transformar o corriqueiro em macabro, o comum em especial o ordinário em extraordinário e, depois de ler sobre o Verdadeiro Nó, o leitor verá com outros olhos grupos de viajantes aparentemente inofensivos, especialmente se estiverem em trailers.

É interesse ver King desenvolvendo Dan e criando o Verdadeiro Nó. Ele se preocupa em dar estofo a seu personagem, que provavelmente guarda próximo do coração, e o autor não desaponta de forma alguma. Muito ao contrário, na verdade, se há um ponto negativo em seu foco em Dan Torrance é que ele não é mais extenso, mais detalhado. King toma algumas liberdades e usa alguns atalhos convenientes para logo deixar Dan no ponto para a próxima etapa e fica a sensação de “quero mais”.

Sem revelar nada além do que está na sinopse do livro, o caminho de Dan o leva a conhecer Abra, uma adolescente extremamente “iluminada”, que se torna alvo do Verdadeiro Nó. Também aqui, King tem calma. Abra não é jogada no livro como uma erva-daninha que de repente surge em um perfeito jardim. Ele a constrói com o mesmo grau de zelo que constrói o Verdadeiro Nó, tangenciando e cruzando as ações do grupo e da menina ao longo de anos e costurando uma ligação profunda com Dan, ainda que isso seja feito discretamente.

Muitos imaginarão que a relação mestre-pupilo que existiu entre o chefe-de cozinha Dick Hallorann e Danny em O Iluminado se repete em Doutor Sono e, sem medo de spoilers, esse é justamente o caminho que King segue. Há surpresas e revelações mil, a maioria bem engendrada e bem inserida na narrativa, outras nem tanto (como uma das finais, que achei desnecessária e exagerada), mas a conexão Dan-Abra é, em sua essência, a que Dick teve com Danny.

Mas, em Doutor Sono, há uma camada a mais nessa relação. Enquanto O Iluminado olha para a frente, para o caminho  futuro do pequeno Danny a partir dos ensinamentos de Dick, Doutor Sono olha para dentro de Dan, fazendo-o enfrentar seus próprios demônios, sejam eles reais ou não. Esse aspecto psicológico da continuação de King é muito enfatizado e tem resolução mais do que satisfatória, pois parece ter sido esse o foco do autor.

A ação externa em si, a confrontação propriamente dita, é quase que um detalhe menor, tanto que é abordada não de maneira apressada, mas sem realmente um mergulho narrativo que tiraria a ênfase do lado psicológico. É eficiente em termos narrativos, não mais do que isso, ao passo que a resolução do conflito interno de Danny/Dan é redonda, sem arestas a aparar.

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Ao fazer uma continuação que ninguém realmente esperava de um clássico inesquecível, Stephen King mostra que ainda tem muito a oferecer a seus leitores. Sua volta ao seu próprio passado é um deleite narrativo que merece ser apreciado sem reservas pelos fãs do gênero, mesmo aqueles que ainda não tenham lido O Iluminado.

Doutor Sono (Doctor Sleep, EUA – 2013)
Autor: Stephen King
Publicação no Brasil: Suma de Letras (Editora Objetiva)
Tradução: Roberto Grey
Páginas: 475

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