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Crítica | E La Nave Va

por Luiz Santiago
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Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, – e acaso para reconciliar-se com o céu – compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno. […]

Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.”

Machado de Assis.

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O compositor Nino Rota foi responsável pela trilha sonora de todos os filmes de Federico Fellini realizados entre 1952 (Abismo de um Sonho) e 1979 (Ensaio de Orquestra). Com o falecimento do compositor, em abril de 79, Fellini se viu em maus lençóis, justamente porque iniciara com Rota um pequeno período de filmes que teriam a música como principal agente dramático. A ausência do compositor preferido e amigo pessoal fez com que Fellini voltasse seus olhos (e ouvidos) para uma arte tipicamente italiana, mas que nunca estivera em um filme seu com grande importância: a ópera. O resultado desse olhar gerou aquele que é considerado o último grande filme do mestre italiano, E La Nave Va (1983), única fita do cineasta com música completamente não original e um verdadeiro desfile de personas-cantores excêntricos rodeados pelo primeiro grande conflito do século XX: a Primeira Guerra Mundial.

Ironicamente, o filme é um cortejo fúnebre. O navio Glória N. parte com a nata da cena operística mundial em direção à Ilha de Erimo, para espalharem sobre o mar que a rodeia as cinzas da maior diva de todos os tempos: Edmea Tetua¹. Matronas fellinianas, palhaços, tenores, sopranos, pervertidos sexuais, uma equipe de jornalismo que registra a viagem e um rinoceronte são passageiros desse navio que mais parece a alegoria medieval retomada por Foucault quando estudou a história da loucura: a nau dos loucos². Sabemos que para Fellini o cinema era uma espécie de bastidor revelador da vida, muitas vezes confundindo-se com a realidade. Com efeito, em dado momento da projeção de E La Nave Va, somos apresentados a situações encenadas e, em outro, à vida sem representação, com as fraquezas e segredos dos passageiros postos diante da objetiva voyeur de Fellini, da qual o espectador é cúmplice.

E La Nave Va não é apenas uma pseudo-ópera montada para cinema de estúdio, mas também um primoroso exercício de metalinguagem e um diálogo com o cotidiano artístico-musical. Se em Os Palhaços (1970), Fellini retomou no circo a metalinguagem cinematográfica trabalhada desde o seu primeiro longa e que voltaria em suas duas obras-primas, A Doce Vida (1960) e 8 ½ (1963), em E La Nave Va a confusão entre navio-palco, realidade-ópera, discurso-libretto, personagem-cantores serve para elevar esse nível artístico-cultural ao patamar mais plural possível. Lembremos que o cortejo fúnebre do Glória N. é registrado por uma equipe de televisão³, um terceiro formato narrativo dentro da mesma película.

O jogo de criação cênico-narrativa começa já na primeira sequência do filme. Em P&B (banhado em sépia), vemos os passageiros do navio chegarem ao porto. Enquanto desfilam os rostos, olhares e personalidades, ouvimos o ruído do projetor em funcionamento. Somos, nesse início, espectadores passivos de uma apresentação: os passageiros do Glória N. chegando ao cais. O primeiro desvio dessa condição acontece quando o Senhor Orlando, jornalista encarregado de cobrir a viagem, aparece pela primeira vez. Em uma sequência de bastidor, o vemos arrumar a gravata e um intertítulo nos informa o que ele resmunga impaciente: “Dizem: faça a crônica, conte o que acontece… Mas quem é que sabe o que acontece?”. Em seguida, após trocar de chapéu diversas vezes (e ficar muito parecido fisicamente com Fellini), olhando em direção à câmera, brincando com o espectador, o jornalista começa sua matéria, também mostrada num intertítulo: “Quem, por acaso, passasse pelo cais 10 numa manhã de junho de 1914, veria que…”. Mas tanto o jornalista quanto o cinegrafista são atrapalhados pelos transeuntes e curiosos de todas as idades, não podendo concluir a chamada externa.

É essa indicação de uma segunda câmera filmando que faz o espectador responsável pelos segredos revelados. Somos um observador onipresente. No decorrer do filme, esse caminho de representação da TV versus a representação cinematográfica, que futuramente terá a representação operística no páreo, não encontrará limites. Já em avançada trama, a câmera invadirá o quarto vazio de um dos hóspedes. Não há ninguém em cena. Porém, minutos depois, o Senhor Orlando, conversando com espectador sobre o Conde que ocupa o tal quarto, dirá: “Vocês acabaram de ver no quarto dele”.

A passagem do Primeiro Cinema para o Moderno, ou, da realidade sem cor e som que vemos nos primeiros minutos de E La Nave Va para os moldes conhecidos do cinema “desenvolvido” acontece quando o ruído do projetor diminui e diversos sons diegéticos (primeiro os sons mecânicos, depois as vozes) acompanham as imagens. Ao sexto toque da banda para o embarque das cinzas da Diva, o insosso tom sépia desaparece lentamente e a cor toma todo o quadro. Um maestro aponta para um canto cego e o piano inicia uma ária. Ao subirem as escadas do Glória N., os passageiros cantam o “tema do Destino” de La Forza del Destino, de Giuseppe Verdi. Outras óperas do compositor também serão usadas aqui, bem como peças de Bellini, Tchaikovsky e Rossini.

Se fora do navio a câmera do cineasta mostrava-nos as personas-objeto em trânsito, durante a viagem, a revelação das verdadeiras personalidades, temores e defeitos ganham a atmosfera. A viagem rumo a Erimo é um desfile de egos. Sobra espaço até para a luta de classes, quando os cantores vão visitar a casa de máquinas do navio e um dos trabalhadores pede: “Idelbranda, cante para nos consolar!”. Dá-se início a uma disputa grotesca de tessitura vocal entre os personagens, que são filmados cada vez em planos mais próximos, atingindo o clímax do ridículo quando os primeiros planos captam as bocarras abertas, os desvios dos olhos e os maneirismos das mãos.

A explosão da Primeira Guerra Mundial irá alterar o rumo de toda a história. O roteiro perpassa os temas da política e da diplomacia em meio a toda a fauna felliniana, inconformada com o resgate que o capitão do navio dera a um náufrago sérvio. Se na casa de máquinas a oposição de classes sociais dera-se no campo lírico, com a chegada dos náufragos isso fica mais evidente: enquanto a elite do navio faz sua refeição com desdém a todo o resto, os miseráveis penduram-se nas janelas e a observam-nos com olhares famintos. Importante ressaltar que na dinâmica interna do filme, os ricos passageiros parecem peças de vitrine fora da realidade, observados de fora pelos maltrapilhos europeus orientais. Apenas na arte há a possibilidade de uma relação “amigável” entre os dois povos e classes sociais, e esse momento se dá quando os sérvios executam e dançam uma czarda. A dança cigana logo chama a atenção de alguns musicistas que afirmam “já ter estudado aquilo”. Como é típico dentro da mentalidade desse grupo social, o exótico tem respeito pela possível comercialização ou por servir de escada para estudiosos que querem ensinar a um povo a sua própria cultura – coisa que vemos acontecer no filme.

A guerra é o prenúncio do fim, mas não vemos a derrocada do palco das representações, ou seja, o navio. Ciente da condição de ser a poderosa registradora de toda a vida, a câmera na grua afasta-se ainda enquanto o navio torpedeado pelos austro-húngaros é visível e vemos toda a equipe técnica por trás do mar de plástico: os câmeras, o fotógrafo, o técnico de som, a equipe de iluminação e efeitos visuais e o próprio Fellini. O cinema se revela, se despe diante do espectador, mostra que tudo o que se passou na projeção foi uma representação da vida. E como que para sustentar a tese em tom irônico, plantando um ciclo vicioso, voltamos à cor sépia, ao ruído do projetor, ao som abafado. A confissão descabida do jornalista e a narração do fim das outras personagens contrasta com sua versão muda do início do filme. A câmera então se distancia do barco com o paquiderme. Uma íris se fecha e o piano embala os créditos finais. Assim como começou, o filme termina: com um barco em direção a algum lugar.

Em E La Nave Va Federico Fellini dirigiu o seu filme mais próximo de Jean-Luc Godard. Sua desconstrução do objeto e produto fílmicos, o uso preciso e pontual da música, a opção pela metalinguagem como elemento corrente, os jogos de cena, a fina ironia e a crítica social estão presentes nesse navio, assim como nos filmes do mestre francês. Mas em Fellini, a teatralização circense da direção dá um tempero todo especial e esse modelo narrativo de “anti-cinema”. E La Nave Va é um filme para poucos. A melhor película que temos na fase final de seu diretor e um exemplo de que em cinema se pode fazer de tudo, basta perceber essa fluidez da vida que segue como um barco num mar sem fim; ou como uma ópera épica em um palco do tamanho do mundo, captada por diversas lentes, ângulos, e em distintos formatos.

1 – Possivelmente uma alusão felliniana àquela que foi a maior soprano do século passado, Maria Callas, falecida em 1977, e que teve suas cinzas espalhadas no mar Egeu.

2 – Também conhecida como “a nau dos insensatos”. Há uma pintura do mestre flamengo Hieronymus Bosch que trabalha o mesmo tema, e também um filme de Stanley Kramer de título homônimo à alegoria, lançado em 1965, com Vivien Leigh, Lee Marvin e José Ferrer, no elenco.

3 – Fellini já usara a TV no filme anterior, Ensaio de Orquestra, e voltaria a usar em dois dos seus três filmes seguintes: Ginger e Fred (1986) e Entrevista (1987).

  • Crítica originalmente publicada em 10 de fevereiro de 2014. Revisada para republicação em 08/06/2020, como parte da versão definitiva do Especial Federico Fellini aqui no Plano Crítico.

E La Nave Va (Itália, França, 1983)
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Federico Fellini e Tonino Guerra
Elenco: Freddie Jones, Barbara Jefford, Victor Poletti, Peter Cellier, Elisa Mainardi, Norma West, Paolo Paoloni, Sarah-Jane Varley, Pina Bausch
Duração: 132min.

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