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Crítica | Ele Está de Volta

por Luiz Santiago
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Em tempos de grandes mudanças a arte não se cala. Seja na dramatização, crítica, paródia ou documentação da realidade, a reprodução de trágicos/importantes eventos do presente acabam fazendo parte de criações nas mais diversas áreas artísticas ao redor do mundo, cada uma delas com diferentes impactos. No caso de Ele Está de Volta, o início de tudo se deu com o lançamento do livro de mesmo nome, escrito por Timur Vermes em 2012, obra que custava a sintomática quantia de €19,33. Em 2015, o diretor David Wnendt (o mesmo de Combat Girls, obra com temática política relacionada ao neonazismo; e também o mesmo do sexy Zonas Úmidas) adaptou o livro para o cinema, repetindo o sucesso de público e, assim como na obra original, abrindo as portas para um sem-número de polêmicas que vão da política e dos meandros do “revisionismo histórico” até os possíveis “limites do humor”.

Parodiando De Volta Para o Futuro e com pinceladas temáticas, estéticas e narrativas de O Grande Ditador (1940), A Queda! As Últimas Horas de Hitler (2004) e Minha Quase Verdadeira História (2007), Ele Está de Volta nos mostra Adolf Hitler em Berlim, em outubro de 2014, vindo diretamente de seus últimos momentos no bunker, em abril de 1945. O filme é uma sátira social, política e cultural e seu roteiro assenta-se em três colunas: o humor negro, de onde vem a matéria-prima para a sátira; a crítica política, que compara líderes alemães do pós-Guerra e chega aos chefes dos partidos neonazis e similares da atualidade; e a crítica sócio-cultural, complemento imediato da política focado no senso comum da população germânica e na cultura e comunicação de massa atuais, destacando-se aí a TV e o Youtube.

O diretor David Wnendt adota a postura mais acertada para tratar esse tipo de caso fora do livro, visto que a mudança de mídia obrigada um trato engenhoso para o que a palavra consegue fazer mais facilmente. O cineasta não se recusa a falar dos temas delicados, não se condói com o deplorável humor ‘anti’ que esse tipo de enredo gera e não deixa de tocar em feridas relacionadas à etnia semita, pegando e adaptando com louvor a única coisa obrigatória no texto de qualquer adaptação para o cinema: a essência da obra original.

A discussão sobre o que é ou não é permitido no humor perde fôlego em Ele Está de Volta porque o roteiro não está apenas fazendo piadas racistas gratuitamente. Há contexto, há motivação fictícia e há auto-crítica. É ser bastante ingênuo tomar o conteúdo do filme como “deplorável” ou qualquer outro adjetivo que se possa trazer nessa esteira, só porque ele “faz piada com coisa séria”, deixando de considerar todo o restante da obra.

O rumo seguido pelo diretor é de implosão do sistema que ele satiriza e as organizações judaicas ao redor do mundo reconheceram isso tanto no livro quanto no filme. Na crítica feita no jornal The Jewish Daily Forward (Nova York) o historiador e especialista em estudos judaicos Gavriel Rosenfeld elogiou o tratamento dado por Timur Vermes no livro e levantou apenas, como ponto negativo, que em dado momento a obra talvez pudesse ser lida como se glamourizasse o que tentava criticar, mas nós sabemos que este tipo de visão está nos olhos de quem lê a coisa com glamour, afinal, trata-se de uma sátira. Há quem veja ali ofensa demais para servir de discussão (necessária!) de sua temática. Há quem veja ali louvor ao objetivo satirizado. Há quem veja ali um caminho cômico, em certa medida, e extremamente ácido para falar de extremismos políticos e ideológicos em nossos dias. Hitler certamente é um dos melhores indicados para servir de porta-voz disso na ficção, mesmo que sua figura e a memória e dor históricas relacionadas a ele causem um tremendo incômodo no público.

Superado o tratamento, expostas as intenções do roteiro e contextualizado todo o enredo, será muito difícil para um espectador, especialmente um cinéfilo com algum conhecimento de História Geral, não aproveitar o filme. Wnendt parte do princípio de que vivemos em uma sociedade mergulhada em [pseudo/des-]informações, em proliferação de telas, em mania de flashes e obcecada por se expor (de formas amplas) na internet, na TV, na rua e, com isso em mente, ele torna o ágil caminho narrativo do livro para nos contar a história em múltiplos formatos, brincando, inclusive, com o ideal de filme-conceitual de Alexander Kluge, que inicialmente se faz bobo demais, depois dramático, depois documental, televisivo e por fim jornalístico, uma mudança de gêneros que conta com pequenas outras incursões típicas da estética televisiva misturadas a um ideal de cinema engajado.

Há muito das propostas do Manifesto de Oberhausen em Ele Está de Volta, tanto no modelo de trabalhar o tema político quanto na forma do filme, que guarda, como já dito, semelhanças com o Cinema Novo Alemão e parte da Reformulação Conceitual e Fase Histórica do diretor Rainer Werner Fassbinder, com destaque para os filmes A Viagem de Mãe Küster para o Céu (1975 — na discussão de humanismo, política, mídia e absurdo), Alemanha no Outono (1978 — sugiro fortemente que o leitor pesquise sobre o que foi o “Outono Alemão”), A Terceira Geração (1979 — na discussão sobre revolução, luta armada e terrorismo) e O Desespero de Veronika Voss (1982 — basicamente na luta ideológica para a pergunta: quanto de nazismo ainda existe na Alemanha? E no mundo?).

Nós começamos o filme com tomadas aéreas entre as nuvens, emulando as cenas de abertura do documentário O Triunfo da Vontade (1935), dirigido pela grande cineasta Leni Riefenstahl (apesar de suas ideias políticas) que é lembrada por Hitler, a quem compara com a produtora-chefe da TV, Katja Bellini. De um princípio simples e propositalmente pastelão, o filme vai adquirindo conteúdo e alterando a sua forma, ora exibindo takes de celulares ou de câmeras não digitais, ora utilizando-se de exibição em TV, de desenhos animados para acompanhar o tráfego de Hitler e Sawatzki pela Alemanha, de vídeos do youtube, blogs, redes sociais, songify, entrevistas com pessoas fora do filme interagindo com o personagem de Oliver Masucci, caracterizado de Hitler e, no final, de exibição real de reportagens sobre a situação política (o avanço dos partidos marrons) e social (a questão da imigração) na Europa pós-2014.

Há ainda uma virada de jogo no formato e no texto quando começa a ser realizado um filme dentro do filme, fator metalinguístico que possui um imenso significado de diálogo intra/extra filme, culminando com a relativização de todo o enredo, que se volta, como um monstro, para o próprio espectador: afinal, toda essa semente de ódio está “por aí” ou está dentro de cada um? Quem, de fato, é o responsável por chocar O Ovo da Serpente?

A sátira é uma técnica literária muito difícil de ser concebida e costurada, especialmente quando se tem por princípio polêmicas histórias de “nível Hitler”. Exatamente por este motivo o espectador deverá ver algo a mais em Ele Está de Volta. A diversidade da forma e o ponto final onde o longa nos deixa servem para reflexão de como o extremismo calca os degraus da política, de como a democracia é mal entendida e mal administrada, de como as mídias audiovisuais (e isso é uma autocrítica do próprio filme que é apenas aludida no livro) servem para expor pessoas e ideias que ganharão facilmente adeptos saudosos de governos que ditam todos os passos dos cidadãos e, o mais impactante de todos, a facilidade que as massas têm de se esquecer da história recente do mundo e transformar, de um dia para a noite, um pária em um herói, e vice-versa.

Percebam que tudo no longa se torna espetáculo, um meio para ganhar dinheiro, um fato-gerador cíclico para programas de debate e jornais impressos ou televisionados. A cada extremo, morte, manifestação e defesa de indefensáveis, uma nova horda de apoio a esses indivíduos e grupos surge. E com a mesma intensidade, os que identificam o “verdadeiro Hitler” em tudo isso são taxados de loucos, precisam ser afastados, internados, desacreditados por serem alarmistas, exagerados e estarem “fora da realidade”.

Poucos querem ver. Alguns fingem que não veem. Outros dizem isso já a algum tempo, mas toda a gente acha normal, acredita ser isto parte dos novos tempos, acostumaram-se com o fato de o mal ser banal. Ele, de fato, está de volta. Não só do lado de fora, mas nas cabeças e bocas de muita gente pelo mundo. Resta saber o que esta volta há de trazer para mais este capítulo da nossa História. Depois da tragédia, é chegada a vez da repetição pela farsa.

Ele Está de Volta (Er ist wieder da) — Alemanha, 2015
Direção: David Wnendt
Roteiro: David Wnendt, Mizzi Meyer, Marco Kreuzpaintner, Johannes Boss (baseado na obra de Timur Vermes)
Elenco: Oliver Masucci, Fabian Busch, Katja Riemann, Thomas M. Köppl, Marc-Marvin Israel
Duração: 118 min.

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