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Crítica | Elle (2016)

por Luiz Santiago
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Quando alguém diz para um cinéfilo: “você nunca viu um filme assim antes“, por mais confiança que se tenha na pessoa, uma semente de dúvida nasce. “Será mesmo?“. A dúvida é legítima e ajuda a aceitar a provocação, a ver o filme como um desafio. Em Elle (2016), é como se Paul Verhoeven tivesse aceitado ele mesmo o desafio de fazer um filme diferente, em todos os sentidos, sobre um dos temas mais polêmicos e complexos — por muitos motivos — de se retratar em qualquer arte: o estupro.

Assistir Elle é como escalar uma montanha infinita de “você nunca viu um filme assim“, vestindo camadas e camadas de provocação. O estupro aqui não é um subterfúgio e nem uma surpresa. Ele está no trailer, na sinopse, nos teasers do filme. É como se o diretor não quisesse que a ideia de que o estupro acontecerá fosse desconhecida. E isso é muito bom, porque quando imaginamos determinado tema, temos em mente um certo parâmetro de tratamento para ele, afinal, quantos filmes já não retrataram esse ato abominável de diferentes formas? Inovador como é, Verhoeven nos deixa cientes de algo que deve acontecer, mas não da forma como imaginamos ou vimos antes. A estrutura aqui enaltece o conteúdo de uma maneira quase sublime. E percebam o conflito: como se referir a uma cena de estupro, mesmo em uma ficção, de forma esteticamente elogiável, bonita, enaltecedora? Pois é. Este é um dos caminhos de conflitos morais que Elle nos traz.

O marrom e os tons térreos, cores de destaque na fotografia de Stéphane Fontaine (Capitão Fantástico) são um indício de isolamento, princípios selvagens do homem, rudeza e crueza que iremos presenciar em torno de Michèle Leblanc, a protagonista, interpretada de forma monstruosa por Isabelle Huppert. Não existe concessão em nenhum momento do filme. O ato do estupro é apenas uma das muitas coisas ruins ligadas à história de Michèle, que tem um passado terrível, com o qual se digladia e se defronta de tempos em tempos. E não bastassem esses demônios pessoais, sua relação com o filho, o ex-marido e a mãe também não é das melhores e são igualmente problematizadas e exploradas no mais agudo dos sentidos pelo diretor.

A primeira impressão que o roteiro nos dá é de uma vingança mesclada a uma passividade quase inacreditável por parte da protagonista. Mas ao mesmo tempo isso parece incoerente, até difícil de aceitar, porque Isabelle Huppert cria uma personagem fora dos padrões de classificação fácil. Ela possui nuances delicadíssimas, manifestado-as aos poucos, diante de cada nova situação. É como se o público visse cada uma das máscaras possíveis de Michèle no decorrer da história e mudasse periodicamente de opinião sobre ela e seus atos, a cada nova descoberta.

Os relacionamentos familiares em meio a tanta controvérsia e a clara linha patológica sugerida pelo roteiro, que é baseado no livro de Philippe Djian, tornam a obra difícil (no melhor dos sentidos) de se digerir e julgar por seu conteúdo. É preciso ter muito cuidado para não colocar o diretor como conivente com determinadas situações. O que torna Elle um filme único é justamente o conjunto quase absurdo de especificidades que formam a personalidade e a vida da vítima, com quem o público terá uma variedade de status de relacionamento. Entre olhares lascivos ou contemplativos, muita exploração do silêncio, uma trilha sonora notável — tanto os belíssimos temas compostos por Anne Dudley, quanto o bom uso de obras de Rachmaninoff e Lust For Life, de Iggy Pop — e um elenco afiado, a trama avança por todas as suas perversões e contestações de inocência, sempre criando polêmicas e um pouco de ódio por este ou aquele personagem.

Uma das relações de amizade de Michèle acabará tendo um tratamento menos interessante no final, criando um pequeno abismo que, mesmo não atrapalhando e não sendo exatamente fora do contexto ou atmosfera da obra, nos faz perguntar por que coisas de maior impacto não ganharam atenção no desfecho. O tema, porém, é concluído a contento. O diretor não tem medo de explorar a desfaçatez e a ideia de jogo erótico, algo que pode incomodar alguns grupos sociais, se não houver uma leitura honesta e cinematográfica da coisa.

Elle é um filme desafiador. Rigoroso na forma, com cenas líricas que nas mãos de outro diretor poderiam se tornar um clichê horrendo (prestem atenção na parte das janelas sendo fechadas, antes da tempestade), e ao mesmo tempo, cenas de puro horror físico, psicológico e moral, o longa nos convida a visitar a mente de uma “mulher normal”, cheia de dúvidas, perturbações e anseios, assim como todos aqueles que a cercam. E talvez seja isso o que mais choca, o que mais impacta na película. Apesar de toda a especificidade, nem a direção e nem o texto colocam os personagens como “exceções à regra”, agindo por impulsos incontroláveis ou, pobres-coitados, dominados por uma fúria ou desejo sobrenatural. Nada disso. Todos aqui são socialmente normais, bem relacionados, cidadãos comuns. Mas é dessa faceta dos “mocinhos & mocinhas” que surgirá não uma, mas as várias formas de um crime. Como na vida real. Só que melhor.

Elle (França, Alemanha, Bélgica, 2016)
Direção: Paul Verhoeven
Roteiro: David Birke (baseado na obra de Philippe Djian)
Elenco: Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny, Charles Berling, Virginie Efira, Judith Magre, Christian Berkel, Jonas Bloquet, Alice Isaaz, Vimala Pons, Raphaël Lenglet, Arthur Mazet, Lucas Prisor, Hugo Conzelmann, Stéphane Bak
Duração: 130 min.

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