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Crítica | Entrevista

por Ritter Fan
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estrelas 5

Próximo de encerrar sua carreira, Federico Fellini faz, em Entrevista, uma espécie de resumo de sua obra, uma ode ao cinema, uma homenagem ao estúdio que o abrigou e, de quebra, um magnífico filme. Assim como Luis Buñuel, que olhou para trás em sua carreira em seu penúltimo filme – O Fantasma da Liberdade – encerrando-a na obra seguinte, Fellini olha para trás em seu penúltimo filme e dá um último adeus à arte que ajudou a elevar a patamares mais altos com sua filmografia estonteante.

E Entrevista não seria uma antologia felliniesca sem a metalinguagem que o diretor trabalhou tão maravilhosamente bem em Oito e Meio. E a volta ao seu passado é também completada com uma volta ao processo criativo que Oito e Meio aborda, mas dessa vez nos dando, em tom semi-documental, um raro e privilegiado olhar sobre a produção cinematográfica em si, sem perder de vista as alfinetadas à produção televisiva como fez em diversas obras, incluindo Ginger e Fred.

Partindo de uma entrevista que uma televisão japonesa quer fazer com ele durante as filmagens de Amerika, uma adaptação de Kafka, Fellini nos conta, em camadas, quatro histórias costuradas à perfeição: a da entrevista, que segue o diretor na elaboração de sets, dirigindo a iluminação, fazendo testes com aspirantes a atores e visitando Marcello Mastroiani e Anita Ekberg; a sua autobiografia, por intermédio de um jovem jornalista, intercalando passado e presente, verdadeiro ou não, desde sua primeira visita à Cinecittà, em 1938; a da (não)produção efetiva de Amerika e, finalmente, Entrevista, que envelopa as demais linhas narrativas em um filme surpreendentemente coeso e muito menos “viajante” do que nos acostumamos a ver saindo da mente fértil do diretor.

Sendo personagem de seu próprio filme e em duas versões (ou três, se considerarmos Mastroiani como uma faceta dele), Fellini passeia narcisisticamente por sua carreira, basicamente homenageando a si próprio e as pessoas que o ajudaram a ser o que se tornou. Para alguns, pode parecer um excesso de auto-elogios, mas o diretor sabe dosar sua presença, deixando muito mais a obra fluir naturalmente do que qualquer outra coisa. Sem esquecer-se de ressuscitar seu amigo e companheiro Nino Rota, ao reutilizar as melodias mágicas do maestro, que falecera em 1979, qualquer cinéfilo poderá se identificar com a caminhada onírica que faz pela Cinecittà. Reparem, por exemplo, na bela sequência em que, em um estúdio, eles recuperam um bonde, o colocam em cima de um caminhão, enchem de atores e, magicamente, começamos a passear pela filmagem da cena que logo se transforma em um passeio pela Itália, com direito a cidades, campos, florestas, cachoeiras e, até, elefantes. A fusão entre sonho e realidade, uma das grandes marcas da obra do mestre italiano, pode ser vista muito claramente nessa longa sequência que começa e acaba na Cinecittà, um movimento circular que introduz o jovem Fellini (Sergio Rubini) ao fantástico mundo dos estúdios.

Mais para a frente, durante a filmagem de Amerika – uma produção fictícia imaginada justamente para Entrevista – em um cenário de sonho, vemos um diretor nervoso, gritando com seus atores e, principalmente, com os designers de produção. É só gritaria, reclamações de cortes de orçamento, de elefantes de papel no lugar dos verdadeiros e nós acreditamos no que vemos e o que está acontecendo, somente para Fellini quebrar essa ilusão e mostrar que se trata, novamente, de um filme dentro do filme e é ele, com seu assistente de direção Maurizio Mein, que está comandando tudo.

A perfeição em que Entrevista transita entre metalinguagens sem confundir o espectador é absolutamente arrebatador e permite ao cinéfilo – gostando ou não de Fellini, mas, se você não gosta, seria o caso de fazer uma auto-análise – uma visão privilegiada do processo de produção, dos bastidores de um estúdio (e não de um qualquer!) e da intrincada mente de um brilhante diretor. Há diversos documentários sobre os bastidores desse tipo de produção, mas o que Fellini oferece, assim como ofereceu em seu documentário (que não é exatamente um documentário) Os Palhaços, é  uma visão apreciadora e subjetiva do caminhar de uma produção. Sai a frieza que costuma marcar mesmo os melhores documentários e entra o calor de um filme-(auto)homenagem da melhor qualidade, que nos chama para participar de todo o processo, seja a escolha de atores, seja a melhor iluminação, seja questões envolvendo cenários defeituosos. E tudo isso dentro de uma generosa camada de aspectos autobiográficos e históricos que tornam a experiência ainda mais deliciosa e gratificante.

Em perfeita sintonia com a crepúsculo de sua carreira, Fellini, ao final, depois de nos fazer passear por momentos de sua vida e por imagens marcantes que ele criou, como a sequência na Fontana di Trevi em A Doce Vida sendo assistida por Mastroiani e Ekberg (em um daqueles momentos verdadeiramente inesquecíveis da Sétima Arte), volta para um grande estúdio, com as luzes sendo desligadas, mas com uma narração no sentido de que o produtor não aceita que o filme termine assim, desse jeito negativista e que pelo menos um raio de sol apareça como esperança.

Ele, então, liga o refletor. Só resta aplaudir entre lágrimas.

  • Crítica originalmente publicada em 25 de fevereiro de 2014. Revisada para republicação em 22/06/2020, como parte da versão definitiva do Especial Federico Fellini aqui no Plano Crítico.

Entrevista (Intervista, Itália – 1987)
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Federico Fellini, Gianfranco Angelucci
Elenco: Federico Fellini, Sergio Rubini, Marcello Mastroiani, Anita Ekberg, Maurizio Mein, Antonella Ponziani, Lara Wendel, Paola Liguori, Antonio Cantafora, Nadia Ottaviani
Duração: 108 min.

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