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Crítica | Escravos do Rancor

por Ritter Fan
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Quando Luís Buñuel carregou nas cores melodramáticas em Uma Mulher Sem Amor, o resultado foi um novelão mexicano, daqueles de trincar os dentes de tão exagerado. Mas claro, sua liberdade havia sido tolhida e ele teve que dirigir um filme para as massas da época. Quando a adaptação de O Morro dos Ventos Uivantes, clássico romance gótico de Emily Brontë, caiu em seu colo para adaptar, Buñuel, sob o disfarce de dramalhão, fez uma de suas mais poderosas e viscerais obras.

A obra única da irmã Brontë menos conhecida do público em geral já foi adaptada dezenas de vezes em filmes para cinema e TV, sendo uma das mais famosas a película de 1939 de William Wyler, que respeitou o nome original da obra literária tanto em inglês como em português. No entanto, Buñuel faz algo com o romance que nem mesmo Wyler conseguiu: a extração e amplificação da atração sexual, animal e violenta entre os protagonistas, batizados de Catalina (Irasema Dilián) e Alejandro (Jorge Mistral). Desde o primeiro momento em que os vemos juntos e mais graças ao trabalho de câmera de Buñuel do que ao trabalho de atuação da dupla, sentimos essa energia destruidora e já antecipamos, com temor, o que poderá vir nas sequências seguintes. Isso Wyler não conseguiu fazer com a mesma eficiência e eu arriscaria dizer que a fita de Buñuel é a obra superior.

E essa força da natureza que move os personagens é mostrada já no primeiro segundo de projeção, quando vemos Catalina atirando em pássaros. Não caçando. Atirando em pássaros. Há uma significativa diferença. O som da espingarda é onipresente, ensurdecedor. Quando ela adentra a mansão e encontra seu marido Eduardo (Ernesto Alonso) matando uma mariposa a alfinetadas em razão de seu passatempo entomológico, vemos que não temos saída. Só há morte, crueldade e raiva.

Durante a noite chuvosa, Buñuel utiliza uma edição de som que transforma tiros de espingarda em trovoadas. É o prenúncio óbvio de um fim trágico e é quando Alejandro, há anos longe da casa, volta. Eduardo odeia aquele homem e o ódio é recíproco. A irmã de Eduardo, Isabel (Lilia Prado), uma menina quando Alejandro saiu de casa (ele era algo como um empregado adotado pelo pai de Eduardo e Isabel), é visivelmente arrebatada por essa chegada viril de Alejandro. Mas é o momento em que Catalina e Alejandro se aproximam que lança raios e faíscas na tela, daqueles milimetricamente preparados para explodir muito em breve. Essa tensão sexual e animal é autodestrutiva e não só os dois sabem isso, como Eduardo também.

Mas Alejandro é, agora, um homem de posses e voltou para vingar-se da família que, em circunstâncias não inteiramente explicadas no filme – por serem absolutamente desnecessárias para a trama, uma escolha acertadíssima de Buñuel – o expulsou de casa (ou o fez sair, pouco importa o detalhe). A primeira coisa que faz é aboletar-se na granja de Ricardo (Luis Aceves Castañeda), irmão de Eduardo e Isabel, um bêbado também viciado em jogo que perdeu tudo e que, se não pagar o que deve em 30 dias, Alejandro toma posse integralmente do lugar.

E o que impede Catalina e Alejandro de simplesmente irem embora, largando a tudo e a todos? Por trás de toda selvageria, Catalina tem um senso de dever. Ela está grávida e, ainda por cima, gosta mesmo de Eduardo e o respeita dentro do que considera razoável. Ela não esconde dele essa paixão irracional por Alejandro e isso, claro, corrói seu marido por dentro. Ao mesmo tempo e para piorar a já insustentável situação, Isabel atira-se em Alejandro, que aproveita a oportunidade para utilizá-la como um mero instrumento de tortura da família que odeia.

Buñuel, ao encapsular o cerne da obra de Brontë, cria um filme poderoso, arrebatador como a paixão que Catalina e Alejandro sofrem. Sim, pois o sentimento entre os dois não é para eles gozarem, mas sim para eles sofrerem e morrerem por ele. Não há saída e nós sabemos disso desde o começo da fita. Buñuel não tenta enganar ninguém, mas, mesmo sem disfarçar suas intenções, o final, que foi completamente inventado pelo diretor, talvez seja um dos mais eficientes em conectar paixão e sexo com morte. É exagerado e belo. Tocante e desesperador, ao mesmo tempo em que é misericordiosamente libertador.

Trabalhando na estrutura de dramalhão, de novela mexicana, Luis Buñuel consegue, em Escravos do Rancor, deixar-nos uma pequena obra-prima esquecida e pouco comentada. Mas quem a vir não ficará passivo diante do que passa pelas telas.

  • Crítica originalmente publicada em 11 de maio de 2013. Revisada para republicação em 24/05/2020, em comemoração aos 120 anos de nascimento do diretor e da elaboração da versão definitiva de seu Especial aqui no Plano Crítico.

Escravos do Rancor (Abismos de Pasión, México – 1954)
Direção: Luis Buñuel
Roteiro: Luis Buñuel, Julio Alejandro (baseado em romance de Emily Brontë)
Elenco: Irasema Dilián (como Irasema Dilian), Jorge Mistral, Lilia Prado, Ernesto Alonso, Francisco Reiguera, Hortensia Santoveña, Jaime González Quiñones, Luis Aceves Castañeda
Duração: 91 min.

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