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Crítica | Estrada para Perdição

por Fernando Campos
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Com Beleza Americana, Sam Mendes chamou a atenção do mundo por apresentar um trabalho tão marcante, competente e complexo, vencendo, inclusive, o Oscar de melhor diretor. Acumulando tanto sucesso em tão pouco tempo, havia expectativa pelo projeto que Mendes escolheria após seu primeiro filme e, principalmente, se conseguiria igualar o feito atingido anteriormente. Por isso, o diretor causou surpresa quando optou por comandar a adaptação de Estrada para Perdição, história em quadrinhos escrita por Max Allan Collins, uma vez que, na época, adaptações de HQs não eram frequentes, tampouco levadas a sério.

A obra apresenta Michael Sullivan (Tom Hanks), um zeloso pai de família que trabalha como assassino profissional para o mafioso irlandês John Rooney (Paul Newman), que criou-o na infância. Entretanto, quando o filho de Sullivan testemunha um assassinato, Connor Rooney (Daniel Craig), futuro herdeiro da organização criminosa, volta-se contra seu parceiro, resultando em trágicos incidentes. Com a máfia irlandesa atrás de sua família, resta a Sullivan eliminar todos aqueles que ameaçam-no.

Desde o início, Estrada para Perdição possui todos os elementos de um filme de gangster clássico. O primeiro ato é perfeito em apresentar os personagens principais e a hierarquia dentro da organização mafiosa, utilizando um recurso consagrado por O Poderoso Chefão, a festa em família, estratégia eficiente para humanizar os personagens. Além disso, durante a sequência da celebração, fica clara a personalidade de cada figura, ou seja, atestamos que Michael Sullivan é recluso, eficiente e de poucas palavras; já John Rooney é acolhedor e respeitável; enquanto Connor Rooney é debochado e insolente. Méritos do roteiro, escrito por David Self, que consegue estabelecer pilares importante da narrativa em pouco tempo, mesmo que não opte pela estratégia mais original para isso.

Portanto, com um início que remete diretamente à clássicos do gênero, fica a expectativa de que o filme siga por essa linha, até porque, a obra sugere uma trama de traição e poder dentro da organização criminosa. Contudo, no segundo ato, somos surpreendidos por uma mudança temática e tonal dentro do longa. A violência e calculismo dos mafiosos dá espaço para uma bela história entre pai e filho. Aliás, Michael Sullivan cresce consideravelmente com isso, uma vez que nuances suas começam a aparecer, como o medo e a raiva, e sua frieza mostra-se, na verdade, arrependimento pelo caminho que seguiu. Ademais, se o relacionamento de Sullivan com o filho parecia distante (repare como, no primeiro ato, Mendes apresenta-os com certa distância para a câmera e fora do mesmo quadro), descobrimos que a indiferença do pai é medo que o filho siga seus passos, resultando em uma obra que aborda a paternidade de maneira surpreendentemente profunda e verdadeira.

Mas o que torna a obra tocante é a sutileza do relacionamento entre Sullivan e Michael. Não há aqui o melodrama ou gritaria, pelo contrário, em uma das cenas mais belas da obra, quando o protagonista admite sua frieza por achar o filho parecido com ele, o que emociona é acompanhar a dificuldade de sua confissão, gerando uma reação simplista no garoto, que diz “tudo bem” e abraça o pai com afago, sem exageros ou uma busca forçada pelo momento catártico. Aliás, o filme é uma bela representação de sentimentos expressados de maneiras que não sejam através do literal “eu te amo”, como no momento que Sullivan ensina Michael a dirigir, ressaltando o afeto entre eles, mesmo que não digam. Toda essa construção chega em seu ápice no momento certo, o final, trazendo uma dolorosa e impactante cena em que o pai, através de um olhar à beira da morte, mostra o orgulho pelo filho não ter seguido o mesmo caminho, servindo como síntese da abordagem sutil e delicada do relacionamento entre eles.

Essa quebra na expectativa e diferença entre universos é pontuada com perfeição pela fotografia de Conrad Hall. As cenas envolvendo a máfia são fotografadas com uma paleta escurecida e optando por planos mais abertos, distanciando aqueles personagens do público e ressaltando sua apatia; entretanto, quando a história foca no relacionamento de Sullivan e Michael, as cores tomam conta da película, os planos abertos são utilizados apenas para destacar belas paisagens e close-ups surgem para criar a identificação entre o protagonista e quem assiste, fazendo-nos entender seus sentimentos. Entretanto, Hall mostra todo o seu talento nas cenas de tiroteio, utilizando a chuva para criar composições minimalistas, tendo o preto como cor base, e ressaltando como os atos violentos dos personagens são sua ruína.

Ainda sobre o trabalho técnico, a direção de arte e figurino são impecáveis na reconstrução de época e também servem para a estratégia de cores do longa, vestindo os mafiosos com tons acinzentados e escuros. Além disso, o trabalho de som complementa ainda mais a fotografia. Se a trilha sonora de Thomas Newman varia bem entre o lado emocional e violento do filme, utilizando faixas mais eloquentes e outras mais sutis; a edição e mixagem de som são inteligentes em mostrar ou ocultar ruídos de acordo com o que o longa quer transmitir. Perceba como, na cena que John Rooney é assassinado, os tiros que eliminam os capangas não emitem som algum, reservando este recurso apenas para a rajada de balas que mata o mafioso, aumentando a dramaticidade da cena.

Porém, justamente por apresentar uma boa trama sobre pais e filhos, o roteiro falha ao não explorar como poderia a relação entre John Rooney e Michael Sullivan, uma vez que mostrar a infância de Sullivan daria mais peso ao protagonista. Há, por exemplo, uma bela cena em que os dois personagens tocam piano juntos, sugerindo uma relação complexa entre eles; porém, em alguns momentos, mostrar é mais eficiente do que sugerir, algo que a obra não entende. O próprio convívio de Rooney com Connor, seu filho de sangue, não é bem desenvolvido, uma falha grave devido a importância que o relacionamento tem para a trama, dando a impressão de que, por mais que sejam cativantes, os personagens secundários jamais recebem o desenvolvimento adequado.

Aliás, o que aumenta a vontade de acompanhar os coadjuvantes são as ótimas interpretações de Paul Newman e Daniel Craig. Enquanto Newman é impecável em construir uma composição cheia de afeto mas, ao mesmo tempo, imponente, como um chefe da máfia deve ser; Craig destaca com eficiência a perturbação e insolência de seu personagem. Já Jude Law, com o pouco tempo que tem, esforça-se para construir um sujeito complexo, mas o material que possui em mãos não permite que o ator aprofunde-se mais no papel. Contudo, o destaque aqui realmente é Tom Hanks, em um dos melhores papéis de sua carreira, transmitindo o medo e arrependimento de Sullivan muito mais pelo olhar do que pela fala, ressaltando como Sullivan tem resistência em demonstrar sentimentos.

Mesmo que Sam Mendes não apresente uma obra que chegue aos pés de Beleza AmericanaEstrada para Perdição impressiona por seu esplendoroso trabalho técnico, graças a ótima direção de Mendes e fotografia esplendorosa de Conrad Hall. Aliás, determinadas cenas são tão bem construídas que parecem dignas de uma obra-prima, como, por exemplo, o já citado tiroteio na chuva. Porém, se o roteiro de David Self tratasse com mais atenção seus personagens secundários e explorasse com mais afinco o universo apresentado, o filme seria mais marcante do que já é.

Estrada para Perdição (Road to Perdition) — EUA, 2002
Direção: Sam Mendes
Roteiro: David Self (baseado em graphic novel de Max Allan Collins)
Elenco: Tom Hanks, Paul Newman, Tyler Hoechlin, Daniel Craig, Jude Law, Jennifer Jason Leight, Stanley Tucci, Ciarán Hinds, Dylan Baker, Liam Aiken
Duração: 117 min

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