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Crítica | Fahrenheit 451, de Ray Bradbury

por Ritter Fan
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Não existe nada mais poderoso do que a palavra. Ela é capaz de construir e derrubar reinados e governos, criar e matar, acalmar ou agitar. E a palavra escrita, mais do que a falada, tem, ainda, o poder de perpetuar-se, de acumular-se, de servir como registro, de arcabouço histórico para mudanças, sejam negativas ou positivas. E é por essas e outra razões que a palavra escrita é tão cara e tão temida. Quando Johannes Gutenberg desenvolveu a mais poderosa arma da Humanidade – a prensa móvel -, dando início à chamada Revolução da Imprensa, o mundo de conhecimento compartimentalizado acabou, ao  mesmo tempo que os detentores do poder passaram a realmente querer controlar a difusão da palavra, agora escrita e amplamente disponível.

Na História do Mundo, há um sem-número de momentos – antes e depois da invenção de Gutenberg – em que o conhecimento foi agredido e, às vezes, completamente abafado por este ritual, por vezes acompanhado do assassinato daqueles que estudavam e divulgavam as obras. Claro que o mais conhecido e tão aterradoramente próximo foi a sistemática destruição de escritos patrocinada pelo Nacional-Socialismo de Hitler e a vigorosa repressão das liberdades encabeçada por Josef Stalin. Curiosamente, porém, o evento catalisador para a criação de Fahreheit 451, por Ray Bradbury, foi a supressão da liberdade artística causada pelo macartismo nos EUA que, segundo ele, chegou próximo de fazer a mímica dos eventos anteriores.

A obra se passa em um futuro distópico em que os bombeiros não apagam, mas sim ateiam fogo em livros, que são proibidos completamente a não ser que sejam manuais de instrução. Esse futuro é suficientemente a frente da época em que a obra foi escrita, pois as casas não pegam mais fogo por acidente e o mundo já passou por algumas guerras nucleares, ainda que a ambientação não seja pós-apocalíptica, mas sim praticamente o mundo em que vivemos só que com a proibição geral de livros. A narrativa se dá a partir dos olhos de Guy Montag, o bombeiro protagonista que, depois de um encontro casual com sua vizinha adolescente com ideais liberais e uma visão de mundo bem diferente do status quo, passa a questionar sua profissão. Na verdade, passa não, pois esse pensamento já transitava de maneira dormente em sua cabeça e os encontros com Clarisse McClellan apenas o desperta, trazendo sua irresignação à tona e Guy põe em movimento atos de rebeldia que começam a afetar diretamente sua vida.

Divido em apenas três capítulos, a narrativa é descomplicada e, às vezes, excessivamente didática, mas sem ser paternalista. Bradbury não tem intenção alguma de esconder o alerta que deseja fazer com sua obra, deixando muito claro, na superfície, por intermédio dos pensamentos de seu protagonista, os efeitos perniciosos da censura institucionalizada. A divisão nesses três atos, que poderiam ser classificados até mesmo como episódicos, ainda que haja uma perfeita continuidade entre eles, com exceção do papel de Clarisse no contexto geral, leva a uma organização lógica do texto em um crescendo surpreendentemente repleto de ação.

No entanto, tenho para mim que a principal mensagem de Bradbury está um pouco abaixo do que ele escancara com a queima de livros. Se a supressão da liberdade criativa, artística e de manifestação é algo gravíssimo, imperdoável, talvez o mais grave e imperdoável seja a acomodação do ser humano. Nesse mundo distópico criado em 1953, o autor critica fortemente o efeito anestésico que a mídia de massa tem sobre as pessoas e como nós nos deixamos hipnotizar pelo rádio (ainda relevante à época), pela televisão e, chegando aos dias de hoje, pelas redes sociais (algo que Bradbury chega a abordar de certa forma de maneira profética). É a política romana do panem et circenses: deem pão e circo para o povo não pensar em política. A queima de livros, na verdade, é o resultado e não a causa do desinteresse da população em aprender, em estudar para formar julgamento próprio e em enfrentar aquilo com que não concorda. Vejo nesse aspecto o verdadeiro grande alerta do autor, que nos pede para acordar assim como Guy Montag realmente acorda depois de suas conversas com Clarisse.

Chega a ser assustador o quanto Fahrenheit 451 é atual, mas não pelas razões óbvias da supressão de liberdades e sim pela inércia causada por um bombardeio de informações que, em seu agregado, nada significam. Ler pouco de muita coisa – 140 caracteres é o limite! – é o leite morno que disfarça a fome e nos deixa confortáveis e anestesiados, evitando que procuremos algo mais substancial para ingerir. Parar para realmente estudar, ler profundamente sobre alguma coisa e tomar uma posição efetivamente informada é uma arte cada vez mais rara, pois “ninguém tem tempo para ler”, “textão é chato”, “bibliogafia é cansativa”, “tem tudo na Wikipédia” e afirmações assim são a regra e não a exceção e, como Bradbury assevera em sua obra, isso não é de hoje. A acomodação é uma doença e a queima de livros – real ou metafórica, não importa – é uma das mais terríveis consequências.

A palavra de Bradbury não é para ser descartada. Fahrenheit 451 até pode ser ficção, mas a realidade do que é abordado é assustadora. Hora de acordar da letargia.

Fahrenheit 451 (Idem, EUA – 1953)
Autor: Ray Bradbury
Editora original: Ballantine Books
Data original de lançamento: 1953
Editora no Brasil: Editora Globo
Tradução para o português: Cid Knipel
Data de lançamento no Brasil: 11 de junho de 2012
Páginas (versão impressa brasileira): 215

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