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Crítica | Fale Com Ela

por Luiz Santiago
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As conexões e o ‘encontrar-se’ são os elementos mais caros nos filmes de Almodóvar desde meados dos anos 1990, especialmente após A Flor do Meu Segredo. Daí em diante, sua força melodramática foi se tornando mais intensa, seus temas ainda mais universais e a problemática central de seus roteiros, particularmente reflexiva. A grande revolução em sua filmografia aconteceu em 1999, com o icônico Tudo Sobre Minha Mãe, filme que deu todas as cartas para o diretor chegar ao tocante e inesquecível Fale Com Ela (2002), que traz uma das temáticas favoritas na construção de personagens do cineasta espanhol, ou seja, os desencontros particulares e o encontro entre os desesperados.

Como todo grande melodrama o filme tem doses cavalares de palco, mas aqui o foco não é o teatro e sim o balé. A obra é aberta com Pina Bausch e Malou Airaudo interpretando uma cena do espetáculo Café Müller, mas este não é o único momento de representação externa encontrado no filme. Touradas — que rendeu polêmicas para o longa junto a grupos de defesa dos animais, embora a prática seja legal em praticamente todo o território espanhol –; cenas de um filme fictício chamado O Amante Minguante, inspirado em O Incrível Homem que Encolheu (1957); Caetano Veloso cantando Cucurrucucú Paloma; mais um espetáculo de dança nas cenas finais e cartazes de filmes espalhados por cômodos ligados a Alicia e Benigno, tais como King Kong (1933) e Metrópolis (1927) — filmes pautados por impasses de interação entre indivíduos/criaturas — são exemplos de relações complexas vistas em vias paralelas à obra, todas focadas em delinear os laços que o roteiro destrinchará adiante.

A história pode causar estranhamento, no início. Dois homens que se tornam amigos por cuidarem de mulheres em coma vão tendo suas percepções da vida e do mundo mudadas a partir de coisas aparentemente simples de seu cotidiano. Habilidoso que é no trato de influências emotivas para seus personagens, Almodóvar usa todos os motores textuais para fazer do presente um espaço em constante transformação, embora isso quase não seja percebido à primeira vista e só ganhe realmente impacto para o espectador e até mesmo para os personagens, do meio da fita para o final.

Como complemento, o olhar para o passado surge e dá maior sustentação ao que é mostrado na tela. Neste ponto, não só as dicas narrativas mas também estéticas saltam aos olhos. Notem que para cada momento do passado, para cada lembrança e retorno ao presente, o excelente fotógrafo Javier Aguirresarobe (que já assinara trabalhos incríveis como Os Outros Vicky Cristina Barcelona) utiliza um elemento de cor para ligar as partes e dar a tônica do próximo ‘ato’. Amparado por uma montagem orgânica e fluída, o diretor de fotografia conseguiu criar com alguns filtros a premonição de algumas catástrofes pessoais/sociais/morais ou de deixas para eventos mais calorosos, para contatos que modificariam os dois homens da história.

O público quase não percebe essas fases de desenvolvimento porque a montagem é bem feita e torna o andamento da película dinâmico e instigante todo o tempo. Além disso, não temos pontas soltas ou cenas que abrem janelas que jamais seriam fechadas. Almodóvar foi sagaz em fazer de todas as presenças, das enfermeiras e equipe do hospital até os familiares, amigos ou conhecidos dos protagonistas, âncoras e impulsos que enriquecem a personalidade daqueles indivíduos sem que o roteiro precise enxertar cenas com explosões de sentimentos, gritos e didáticos marcos de transformação.

O caminho final traz uma discussão moral intensa, permeada por suspense e lágrimas. Vemos como o ator Darío Grandinetti mostra uma outra face de Marco Zuluaga, sem nunca perder a delicadeza que este personagem tem. Sua reação ao que acontece com Benigno e mesmo a discussão dos atos do amigo são pautadas, quase digeridas e sempre mostradas como um ato humano que pode ser bom ou ruim dependendo do ponto de vista — não há circunstâncias atenuantes ou defesa do que quer que seja. Ele quase assume o olhar do espectador, mas não é neutro a respeito. Zuluaga continua com uma sensibilidade forte, chorando sempre que algo o impressiona, característica que torna este um dos personagens masculinos (e heterossexuais) mais interessantes de Almodóvar.

A emoção, o amor egoísta, o estupro e a discussão das possibilidades e validade de ações para gerar vida (e realizar sonhos) aparecem cobertas com um outro manto, o da fala, da conexão, do diálogo e entendimento entre as pessoas e como isso pode acontecer de diversas formas. Marcado por uma estética forte, perceptível por uma direção de arte que sempre mescla tendências e dá nuances íntimas aos personagens, assim como a romântica trilha sonora, Fale Com Ela ironiza o valor da comunicação e o que ela pode trazer de bom ou ruim para pessoas com níveis diferentes de preparação para dizer ou ouvir coisas. Nesse aspecto, o longa serve como um resumo dos anos anteriores do diretor — entre a tragédia, o amor, a autodestruição e a vontade de pertencer — e como abertura de uma nova estrada para o “Almodóvar dos anos 2000”, que daria voz a crises do homem virtualmente conectado ao mundo, mas incapaz de identificar o que tem para oferecer ao outro.

Fale Com Ela (Hable con ella) — Espanha, 2002
Direção: Pedro Almodóvar
Roteiro: Pedro Almodóvar
Elenco: Javier Cámara, Darío Grandinetti, Leonor Watling, Rosario Flores, Mariola Fuentes, Geraldine Chaplin, Pina Bausch, Malou Airaudo, Caetano Veloso, Roberto Álvarez, Elena Anaya, Lola Dueñas, Ana Fernández, Chus Lampreave, Loles León, Fele Martínez
Duração: 112 min.

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