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Crítica | Flash Gordon no Planeta Mongo

por Ritter Fan
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estrelas 3,5

Para analisar propriamente Flash Gordon no Planeta Mongo, o crítico e o espectador de hoje precisam, obrigatoriamente, transportarem-se para uma longínqua era, quase 80 anos atrás, em que a televisão não existia a não ser em protótipos, em que o cinema ainda era uma forma de arte em desenvolvimento, em que o computador ainda era algo imaginado somente em obras de ficção científica e, talvez principalmente, em que o entretenimento das massas era feito, visto e compreendido apenas pelo seu valor de face, sem preocupações mais profundas do que a mera ação pela ação (não que isso seja muito diferente hoje em dia, apenas saliento que os filmes não eram dissecados como hoje são por um público que precisa saber tudo sobre eles antes mesmo de serem lançados). Somente assim, com esses aspectos em mente, será possível que, hoje em dia, o primeiro serial de Flash Gordon seja verdadeiramente apreciado.

Em uma época em que a TV era algo ainda um tanto quanto futurista, séries de TV, claro, não existiam. Mas o conceito estava lá, literalmente intacto. Eram os chamados serials, que nada mais são do que filmes estendidos, mas cortados em vários episódios e projetados no cinema ao longo de várias semanas como parte de um programa maior. Esse é o caso de Flash Gordon no Planeta Mongo, com 245 minutos de duração, mas dividido em 13 episódios de pouco menos do que 20 minutos, cada um deles projetado antes de um filme mais longo ou como parte de um conjunto de serials, em uma sala de cinema. Isso significa dizer exatamente isso: o fã da série tinha que ir até o cinema toda a semana para acompanhar sua série favorita. É quase surreal imaginarmos isso tantas décadas depois, mas o charme dessa proposta é absolutamente irresistível, não concordam?

O personagem Flash Gordon é provavelmente mais conhecido por sua versão cinematográfica camp (e sensacional!) de 1980, com magistral trilha sonora do Queen (Flash! Ah! Aaaaahhh!). No entanto, apesar de ter figurado em séries de TV animadas e live-action depois dessa encarnação cinematográfica, ele nunca alcançou relevância nos tempos modernos. Mas, na década de 30, o herói era uma sensação, depois de sua criação por Alex Raymond em 1934 como tiras de quadrinhos para jornal, de forma a competir com a já estabelecida série Buck Rogers, de 1928 e fundamentalmente do mesmo gênero. Flash Gordon é um herói da Terra que acaba no planeta Mongo enfrentando o Imperador Ming (O Impiedoso!), com a ajuda de Dale Arden e do Dr. Hans Zarkov, quando o planeta em si vem em direção à Terra para destruí-la. O sucesso foi imediato e a série foi desenhada e escrita por Raymond ininterruptamente até 1943, sendo que, até 2003, ela foi publicada da mesma maneira, sem solução de continuidade, com o último autor sendo Jim Keefe.

A premissa acima é justamente a mesma que foi aproveitada em Flash Gordon no Planeta Mongo, ou seja, fundamentalmente uma história de origem, mas que, ao longo de seus curtos 13 episódios, conta uma narrativa fechada, com começo, meio e fim, sem “pedir” uma nova temporada. Vemos a Terra ameaçada pela chegada do planeta Mongo, o Dr. Zarkov coincidentemente tragando Flash Gordon (filho de um cientista que duvida das teorias de Zarkov) e Dale Arden, a eterna donzela em perigo, para uma viagem espacial até o planeta, onde são capturados pelo Imperador Ming e têm que enfrentar diversos perigos diferentes (ou iguais – mas já chego nisso), amealhando aliados ao longo do caminho.

Para viver o protagonista, Buster Crabbe foi a escolha óbvia. O ator, que, assim como Johnny Weissmuller, era campeão de natação e já havia vivido Tarzan em um serial de 1933, foi a escolha óbvia. Tamanho foi seu sucesso em Flash Gordon e no formato de serial, que ele basicamente se tornou o “rei dos serials“, vivendo, depois, Buck Rogers. Com físico avantajado (no estilo da época, claro) e com cabelo (exageradamente) tingido de loiro para refletir as madeixas claras do personagem nos quadrinhos, Crabbe é o típico canastrão incapaz de qualquer movimento facial que não sejam teatrais ao extremo, outra marca de muitos filmes da época. Ver Crabbe atuando – ou tentando atuar – chega a ser doloroso de tão cômico (ou seria cômico de tão doloroso?), mas, em sua defesa, seus parceiros de tela, Jean Rogers como Dale Arden e Frank Shannon como o Dr. Alexis Zarkov (o primeiro nome foi alterado de Hans para Alexis sem maiores justificativas) não têm melhor sorte e o trio consegue ser igualmente ruim, com Rogers apenas sendo caras e bocas, além de gritos e desmaios e Shannon sem nem mesmo se dar ao trabalho de mudar a expressão entre júbilo e horror.

E, ainda nesse quesito, Richard Alexander como o príncipe Barin, que almeja o trono de Ming; James Pierce como o príncipe Thun, dos Homens-Leão e Jack Lipson como o príncipe Vultan, dos Homens-Falcão não ficam muito longe de seus pares, ainda que suas atuações sejam bem mais caricatas por natureza e, portanto, mais, digamos, aceitáveis. Os únicos dois atores que oferecem uma módica eficiência dramática (ênfase no “módica”) são Charles B. Middleton como o Imperador Ming e a bela Priscilla Lawson, como a filha de Ming – e apaixonada por Flash – princesa Aura.

Mas convenhamos que ninguém ia para os cinemas assistir Flash Gordon para ver atuações shakespearianas (ainda que nada desculpe caretas ou coisas do gênero). O importante – e é isso que até hoje em dia destaca esse serial – é o senso de deslumbramento. É nesse ponto que o espectador do século XXI precisa realmente se colocar nos sapatos do espectador dos anos 30. Hoje, o CGI transformou nossa experiência cinematográfica – em linhas gerais – em um amontoado borrado de tentativas de espetáculo computadorizado. A cada acerto cinematográfico, 50 erros acontecem, tudo na competição para ver quem faz o show mais pirotécnico. O resultado é que, hoje, o CGI é diluído e, portanto, enfraquecido em termos de fator de captura da imaginação. Esquecemos que em uma era não muito distante, os efeitos eram óticos e práticos, sem ajuda externa de pixels. Flash Gordon no Planeta Mongo representou o primeiro serial verdadeiramente de ficção científica/aventura e sua importância foi tão grande que esse gênero se tornou padrão para os serials de vários anos seguintes (inclusive, claro, Buck Rogers). Se olharmos com os olhos de hoje, veremos apenas “tosquidão”, efeitos arcaicos com naves penduradas com fios de nylon aparentes, Homens-Leão que são homens com cabelos e barbas longas, Homens-Tubarão que são homens com touca de natação prateada, monstros que são tigres comuns (batizado de Tigran), ursos pintados (batizado de, adivinhe, Ursus), polvos e iguanas (com próteses hilárias) filmadas de perto e sobrepostas em algumas sequências, além de outros monstros humanoides que são mesmo humanos vestindo alguma roupa de borracha feita “nas cochas”. E veremos, também, reaproveitamento de cenários de outros filmes, repetição de sequências e uso de imagens de arquivo, cidades inteiras feitas de frascos de perfume pintados (essa foi a perfeita dedução de minha filha menor ao assistir comigo o serial) e extras fantasiados de gorila chifrudo para fazer as vezes do “ameaçador” orangopoide, responsável por uma longa luta na arena contra Flash. Sob o olhar cínico de hoje, o resultado é desastroso. Sob o olhar do espectador dos anos 30, isso é pura magia do cinema, com cenários desenhados em pinturas matte, efeitos especiais pintados diretamente no celuloide e monstros criativos e trabalhados em detalhes.

Era, literalmente, a perfeita aventura para a diversão do final de semana com a família. E essa perfeita aventura é a inspiração para quase que todo o então futuro mercado de ficção científica, tornado Flash Gordon no Planeta Mongo quase que um divisor de águas no gênero, antes ou carregado de simbolismo (como o sensacional e irretocável Metrópolis) ou repleto de exemplares que não mergulhavam de verdade no misto de ficção científica e aventura descerebradas. Tamanha foi a influência desse serial de Flash Gordon – e dos demais, claro – que o objetivo inicial de George Lucas, outro grande responsável pela transformação do gênero e pelo desenvolvimento do Cinema que temos hoje em dia, era, literalmente, refilmar os serials do herói em forma de filmes para cinema. Ele chegou a pleitear a licença à época de seus planos para Star Wars e, para a nossa sorte, não conseguiu, criando um universo próprio, ainda que fortemente galgado em diversos elementos de Flash Gordon.

Assistir Flash Gordon no Planeta Mongo é ver a versão dos anos 30 de Star Wars. Há os rebeldes contra as forças imperiais, um imperador tirânico, um herói puro e valente (Flash pode ser, de maneira intercambiável, Han Solo e Luke Skywalker), uma cidade nas nuvens (Bespin foi diretamente inspirada na cidade do príncipe Vultan), uma princesa em perigo (aqui, claro, há ecos de Uma Princesa de Marte, bem anterior, ainda que Dejah Thoris seja passiva, mais ainda que Dale Arden), um ajudante peludo (Chewbacca é, literalmente, Thun, o príncipe dos Homens-Leão) e monstros que podem muito bem ser pareados com as versões em uma galáxia muito, muito distante. E a própria estrutura do serial também inspirou Lucas, desde as transições (os side swipes clássicos de Star Wars foram literalmente copiados de Flash Gordon) até o texto inicial subindo na tela.

Em poucas palavras, Flash Gordon no Planeta Mongo é um dos mais evidentes precursores da ficção científica aventuresca e de fantasia que hoje adoramos. Uma verdadeira pérola cinematográfica que, com todas as suas limitações, conseguiu capturar a imaginação de seguidas gerações e que, com um pouquinho de boa vontade, ainda consegue o mesmo efeito hoje em dia.

Flash Gordon no Planeta Mongo (Flash Gordon, EUA – 1936)
Direção: Frederick Stephani, Ray Taylor
Roteiro: Basil Dickey, Ella O’Neill, George H. Plympton, Frederick Stephani (baseado em obra de Alex Raymond)
Elenco: Buster Crabbe, Jean Rogers, Charles B. Middleton, Priscilla Lawson, Frank Shannon, Richard Alexander, Jack Lipson, Theodore Lorch, James Pierce, Richard Tucker
Duração: 245 min. (13 episódios de aprox. 20 min.)

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