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Crítica | Gata Velha Ainda Mia

por Mauricio Rosa
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Gata Velha Ainda Mia é um filme que se estabelece pelo jogo de tensões.

Possui, no centro e nas bordas da narrativa, questões espinhosas que não encontram janela no politicamente correto, mas sim no que há de mais recalcado e cavernoso. A velhice hoje, os antigos ideais comunistas, o feminismo na teoria e na prática, desejo e reparação: temas que nos são servidos num prato sofisticado, plenos no sabor da sincera e mordaz realidade.

O fio condutor é sempre retesado e nele desfila a ironia e o sarcasmo de uma mulher imprevisível, Glória Polk, uma escritora atormentada que não consegue encontrar o desfecho definitivo do livro que marcará seu retorno à literatura. Ela (Regina Duarte) recebe em seu apartamento a jornalista Carolina (Bárbara Paz), a fim de lhe conceder uma entrevista amena e trivial. No entanto, os rumos dessa conversa serão bem mais surpreendentes.

O longa não começa com um céu azul, buscando instabilidades dramáticas que aos poucos confirmem a tempestade. Não. O filme já inicia cuspindo os raios e trovões de Glória que, nada mais do que brilhante, exibe vaidosa e deliciosamente mal-humorada seu vasto conhecimento em cultura geral. Carolina, sem um décimo do repertório da escritora, observa tudo como uma aluna diante da mestra – essa será a primeira das muitas personas que ambas assumirão ao longo do jantar-entrevista, num yin-yang contínuo e inusitado: mãe e filha, fã e ídolo, amantes e rivais. Junto a isso, vemos uma brincadeira perigosa armada por Glória onde repelir e aproximar, afagar e massacrar são faces de uma mesma moeda que ela joga à revelia e ao seu bel-prazer.

Tudo isso é construído com base em diálogos críticos e farpados, nos quais alfinetadas e escárnio nunca serão demais. É possível destacar muitos trechos geniais que ouvimos ao longo da projeção. Regina Duarte possui um domínio feroz do texto e engole Bárbara Paz — isso porque assim o roteiro quer, uma vez que ambas apresentam atuações excepcionais.

Em seu primeiro longa, Rafael Primot mostra segurança e mão firme ao encenar num único espaço todo o filme, nunca tornando os quadros repetitivos e sempre nos apresentando um novo canto do pequeno apartamento. Destaque para a cena da dança de Glória ao som de Lágrimas Negras: simples, bela e, como sempre deve ser, resulta em mais uma camada para a personagem.

Quando o filme entra em uma etapa sombria e absurda, na qual as mágoas de Glória inesperadamente flertam com o horror e encontram a loucura, Primot mostra que arriscar é parte da brincadeira cinematográfica mesmo que a meada ameace perder o fio. Não porque tudo se justifique no interessante final, mas os caminhos dessa ficção de Primot são livres e encontram unidade até mesmo no impensável.

No mais, Gata Velha Ainda Mia é um interessante filme sobre a criação literária e seus fantasmas. Autoficção e autoflagelo se irmanam após a falência de várias convicções e a medida entre o real e o imaginário se perdem. Glória é uma heroína trágica, instigante e assustadora, mas sobretudo uma escritora que precisa finalizar o seu talvez derradeiro livro. Para chegar ao ponto final, ela fará tudo o que for possível e, entre brincar e matar, a última palavra sempre será dela.

Gata Velha Ainda Mia – Brasil, 2014
Direção: Rafael Primot.
Roteiro: Rafael Primot.
Elenco: Regina Duarte, Bárbara Paz e Gilda Nomacce.
Duração: 90 min.

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