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Crítica | Gosto de Sangue

por Guilherme Coral
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estrelas 4,5

O que se passa dentro da cabeça das outras pessoas? Tal pergunta, sem resposta na vida real, é constantemente respondida pela literatura, teatro e cinema, seja através de uma narrativa mais intimista, em primeira pessoa, seja através de monólogos shakespearianos. Independente do meio utilizado, o resultado costuma ser similar, nos transportando para a pele do personagem, garantindo a identificação do leitor/ espectador e, consequentemente, sua imersão. A obra também pode trabalhar em cima do desgosto, nutrindo seu antagonista através dessas situações, como é o caso de Iago em Othelo.

Joel e Ethan Coen, por sua vez, neste seu primeiro filme, dispensam nossa quase onisciência e nos colocam como meros passageiros nessa viagem, que começa, de forma propícia, no banco de trás de um carro. Logo no primeiro plano vemos um homem dirigindo e uma mulher ao seu lado, ambos de costas. Somente podemos ver o semblante de seus rostos quando os dois conversam, virando ocasionalmente a face um para o outro. Não é preciso entender o teor da conversa para percebermos que estão agindo por baixo dos panos – o enquadramento preciso dá conta disso.

Aos poucos, através de alguns diálogos bastante naturais, que não se prezam a nos explicar o que acontece de forma didática, vamos compondo o cenário deste drama, até chegarmos em sua problemática central. Julian Marty (Dan Hedaya) descobre que sua esposa, Abby (Frances McDormand) o trai com um de seus empregados, Ray (John Getz). Deixado fora de si por tal situação, ele decide contratar um detetive particular, interpretado por M. Emmet Walsh, para assassinar a mulher e seu amante.

A premissa simples, porém, se dissolve em situações inesperadas, que nos tiram do lugar comum nos imposto por longas-metragens do gênero. Os Coen trabalham em cima do não-dito, ocultando, a cada momento, o que se passa na cabeça de seus personagens. Cria-se, assim, uma evidente tensão, ao passo que não sabemos como cada pessoa irá reagir. Essa situação ainda se estende e, em muitas sequências, sequer sabemos ao certo o que cada um está fazendo, aumentando ainda mais a expectativa que alcança seu ápice de maneira efetiva no clímax da obra.

Aliando-se a essa narrativa realista, o trabalho de fotografia de Barry Sonnenfeld sabe exatamente quando utilizar enquadramentos que não revelam as expressões dos personagens, como é o caso do primeiro plano do filme. Muitas vezes utiliza sutis movimentos de câmera que perfeitamente se encaixam com o ritmo mais lento da trama, dilatando cada ação ao seu máximo, deixando-nos afoitos, ansiando por um desenvolvimento, escolha da direção que funciona para nos deixar ainda mais imersos. Sonnenfeld sabe intercalar esse caráter de passageiro das audiências, com os closes, que, normalmente, trariam à tona as emoções dos personagens.

Joel e Ethan, porém, decidem manter, mesmo nesses momentos, a ocultação da psique de cada indivíduo, trazendo reações naturais que não utilizam de recursos dramáticos teatrais. Novamente vem a dúvida: o que se passa na cabeça dessa pessoa? Aumentando nossa indagação temos figuras com poucas falas, que não necessariamente se destacam pelas suas personalidades e sim pelas situações que se encontram. McDormand, que posteriormente estaria em Fargo, nos traz uma mulher que odiamos e nos identificamos ao mesmo tempo e que não podemos deixar de sentir como se fosse uma pessoa de verdade à nossa frente. O mesmo vale para M. Emmet Walsh, que em seu papel, escrito especificamente para ele, nos assusta com sua crua e violenta simplicidade. No meio disso, ainda temos o personagem de John Getz, que, à mercê dos eventos desencadeados, nos traz um homem verdadeiramente aflito (na segunda metade da narrativa).

Gosto de Sangue consegue nos passar, portanto, uma realista retratação do ser humano, ao mesmo tempo que nos deixa no lugar de meros espectadores, presos assistindo a progressão dessas situações inesperadas. Em seu primeiro trabalho na direção, os irmãos Coen já conseguem nos impressionar, trazendo diversas marcas que manteriam em suas obras posteriores, até a sua mais recente, Inside Llewyn Davis. Definitivamente este é um filme que, como o próprio título traduzido sugere, irá nos deixar com gosto de sangue na boca.

Gosto de Sangue (Blood Simple – EUA, 1984)
Direção: 
Joel Coen, Ethan Coen
Roteiro: Joel Coen, Ethan Coen
Elenco: John Getz, Frances McDormand, Dan Hedaya, M. Emmet Walsh, Samm-Art Williams, Deborah Neumann
Duração: 99 min.

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