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Crítica | Gritos e Sussurros

por Luiz Santiago
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Isolamento e dor. Um espaço confinado, mergulhado em vermelho. Três mulheres vestidas de branco, sussurrando. Estas foram as imagens que assombraram Ingmar Bergman por um tempo considerável, até que ele resolveu utilizá-las em um roteiro. Vindo do fraquíssimo A Hora do Amor, o cineasta também estava em um momento de curto orçamento por parte do estúdio, o que colocava as coisas em termos mais difíceis para ele, exigindo uma produção bem mais meticulosa — ele raramente passou do orçamento ao longo de sua carreira, justamente pela pré-produção extremamente detalhada, mas aqui, a necessidade de economia era a chave para a própria existência do filme, contanto também com possíveis imprevistos no meio do caminho.

Com Harriet Andersson, Kari Sylwan, Ingrid Thulin e Liv Ullmann nos papéis principais, o diretor não precisava se preocupar muito com a parte dramatúrgica, dada a excelência do elenco. Exceto por Kari, o diretor conhecia muitíssimo bem as outras três atrizes, tanto pessoal quanto profissionalmente, e isso facilitava muito o andamento da obra na parte do drama. Coube então a ele e ao fotógrafo Sven Nykvist prepararem o terreno da forma mais tocante e chamativa possível. No contexto, Agnes (Andersson) está em fase terminal de um câncer, sendo “cuidada” por suas irmãs na propriedade rural da família. Acontece que cada uma delas está perdida em pensamentos ou desejos pessoais, não dando à irmã moribunda a atenção necessária, papel que acaba sendo assumido por Anna (Sylwan) a empregada religiosa que tem uma conexão materna (ou erótica?) com Agnes, inclusive na hora da morte. Para Bergman, o não-descanso também deveria ser uma das questões mostradas na fita, com a pergunta embutida: até que ponto o sofrimento de uma pessoa pode chegar? O que pode impedir o seu espírito de descansar?

A extrema dor, o desprezo daqueles que deveriam velar por si e o toque espiritual da obra são coisas exploradas de maneira competente, assim como o tempo e seu impacto nas pessoas (notem os primeiros planos nos relógios, no início do filme), e as massacrantes relações interpessoais entre as irmãs, tendo o toque como um tabu quase impossível de suportar. Mergulhado em vermelho, o cenário ganha uma atenção quase agressiva da fotografia (premiada com um Oscar) que afoga cada personagem nessa imensidão íntima, partindo de um close para uma explosão carmim nos rostos meio-iluminados, meio-escurecidos, toda vez que uma mudança de ato acontece. É como uma peça de teatro tomada de assalto pelo cinema. Nos primeiros momentos, essa exposição funciona como maravilhamento do público e indicação de ponto de vista da personagem ou criação de nova atmosfera — nas quais os figurinos de Marik Vos-Lundh têm um papel de extrema importância –, mas aos poucos, isso ganha um ar de repetição e não oferece nada de novo, tornando essas pequenas cenas um problema recorrente.

A ideia de crepúsculo, ligando luzes da vida e sombras da morte, é erguida rapidamente pelo diretor, que mostra a convalescença de uma pessoa num ambiente onde o egoísmo é a coisa mais forte. Os homens aqui, não possuem nenhuma utilidade, ou por não terem real impacto sobre as mulheres ou porque elas superam-nos em carisma e dissabores. O fato é que Gritos e Sussurros é um filme feminino, muitas vezes interpretado como se cada uma das atrizes interpretasse um aspecto da personalidade de alguém, gerando uma Persona que não aparece na tela, mas é plenamente reconhecida pelo espectador. A música pontual (Bach, Chopin) é ao mesmo tempo outro ícone de agressão, mas também de acalanto, em um ambiente onde o ódio e o desejo desesperado de sentir algo diferente é uma camada latente. Não é à toa que por ódio e vontade de sentir, Karin mutila a genitália com um caco de vidro e Maria reprisa os momentos em que foi desprezada e o fato de que sempre quis se aproximar da mãe e da irmã, ficando impressionada quando era tocada e quando deixavam que lhe tocassem.

Até que ponto a nossa fé e a medida de nosso amor podem ser testados? Por que precisam ser testados? Que lição a dor e o sofrimento trazem para as pessoas? É possível amadurecer, conhecer a Deus, conectar-se melhor com a vida, sem a existência do sofrimento? Reparem que o teatro de lábios se movendo traz a união entre as duas irmãs, até então afastadas por uma barreira que nenhuma delas entendia. E foi preciso a dor para que isso acontecesse. A honestidade no falar ou mesmo a posição de Anna, frente às patroas, seguiram o mesmo ritmo. O pessimismo aqui é imenso até para Bergman. Mas o testemunho de sentimentos em meio à dor vai encontrar em cada nós um espaço diferente. Alguns podem fugir de maneira desajeitada, como Maria, dos braços da irmã; outros vão se entregar maternalmente (ou eroticamente?) a esta realidade, como se fosse impossível evitá-la. E para os dois grupos, existem nuances e posturas paralelas, permitidas pelo roteiro, como a dos maridos, por exemplo. O diálogo com os estereótipos aqui vai longe. Ao fim, apenas as duas palavras do título é que restarão em cena. E lá estará o espectador, no vermelho de sua alma, gritando silenciosamente para um vazio que não vai lhe permitir sequer descansar.

Gritos e Sussurros (Viskningar och rop) — Suécia, 1972
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Harriet Andersson, Kari Sylwan, Ingrid Thulin, Liv Ullmann, Anders Ek, Inga Gill, Erland Josephson, Henning Moritzen, Georg Årlin, Ingrid Sandell, Lena Bergman, Linn Ullmann
Duração: 91 min.

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