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Crítica | Gung Ho – Fábrica de Loucuras

por Giba Hoffmann
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Na segunda metade dos anos 1980, o imaginário popular norte-americano trazia de forma marcada uma noção a respeito do futuro que era fonte de temor e especulação: a possibilidade de, uma vez suplantados de seu lugar de liderança na economia mundial, terem de sucumbir em breve à dominação mundial do Japão. O reflexo disso na cultura pop da época se deu das mais variadas formas. Por exemplo, no âmbito do cinema, temos no futuro irremediavelmente oitentista de De Volta Para o Futuro Parte II um Marty McFly respondendo em videoconferência a seu chefe Fujitsu-san, enquanto que são várias as pistas visuais de uma cultura futurista marcada por influências orientais em Blade Runner. No campo da literatura, a Trilogia Sprawl de William Gibson traz cultura e economia mundiais marcadas pela dominância nipônica. E, no âmbito da música, temos a contribuição um tanto atrasada do Ultraje a Rigor, com seu não-hit de 1992, “Vamos Virar Japonês”. Pois é. É também desta fonte que Gung Ho – Fábrica de Loucuras bebe ao se propor enquanto uma comédia dramática retratando as dificuldades dos trabalhadores de uma fábrica de automóveis japonesa na Pensilvânia, ameaçada de fechar devido à baixa produtividade.

Longe da escala dos futuros distópicos ou da sagacidade da obra-prima da crítica social musical brasileira, a película enfoca sob uma perspectiva bem pé-no-chão a reação do cidadão médio americano em ter que se adaptar a uma cultura que não a sua. A trama gira em torno de Hunt Stevenson (Michael Keaton), funcionário com cargo de chefia da recém-condenada filial da Assan Motors na fictícia cidadezinha provinciana de Hadleyville, PA. Com praticamente toda a economia do lugar dependendo da fábrica, Hunt parte em viagem para a matriz da companhia em Tóquio para tentar salvar não apenas o seu emprego e o de seus amigos, mas a própria cidade em si. Como resultado surpreendente de sua desastrosa apresentação, a empresa recebe uma comitiva de executivos japoneses para supervisionar uma reestruturação a partir da qual uma nova avaliação será feita.

Com Stevenson eleito para servir de mediador entre a nova direção e os funcionários antigos, ele passa a lidar diretamente com Takahara Kazuhiro (Gedde Watanabe), executivo que Hunt conheceu brevemente no Japão participando de um bizarro programa de treinamento para executivos fracassados. Assim, temos uma premissa de uma comédia que se embasa sobre um choque cultural muito especificamente localizado em um período histórico que, aos olhos de hoje, certamente parece bastante datado. Se com uma economia global consolidada e após duas décadas de estagnação econômica no Japão muito do subtexto do filme permanece atado a temas de 1986, por outro lado o fato de que a trama permanece significativa dá pistas de que o central na execução não é a sátira social em si, mas sim o próprio drama interpessoal.

Essa nova empreitada do diretor Ron Howard na comédia traz uma de suas marcas que é a precisão em desenvolver um humor leve, com muita gentileza e pouca acidez. Pode parecer uma escolha pouco eficiente para uma comédia baseada em um choque de culturas, mas eu penso que é justamente o que salva o filme de se tornar um besteirol descartável. É claro que tanto americanos quanto japoneses são retratados como estereótipos. Porém, tratam-se mais de caricaturas simpáticas do que de charges sarcásticas, e é isso que dá a toada para o humor e a tonalidade do filme, que por vezes mais parece um drama leve com toques comédicos. A abordagem aqui preza pelo humor situacional e não pelo satírico, os momentos comédicos construídos mais por mal-entendidos anedóticos do que às custas de satirizar as óbvias fraquezas dos personagens da trama. Trata-se de um filme “com coração”, que enquadra bem o otimismo dos dramas para a família oitentistas.

Os responsáveis por carregar grande parte do sucesso da empreitada aqui são os protagonistas Hunt e Kaz, ambos muito bem interpretados por Keaton e Watanabe, respectivamente. A veia comédica do jovem Michael Keaton nos faz lembrar este lado de sua atuação que foi sendo jogado para escanteio ao longo de sua carreira, mas que para mim é um dos grandes fortes no trabalho do ator. O atrapalhado Hunt é muito bem retratado aqui no melhor estilo da “improvisação roteirizada”. Tanto em seus momentos geniais quanto em suas demonstrações mais contundentes de ignorância, trata-se de uma figura com a qual o espectador consegue empatizar e que diverte de um jeito sutil, provavelmente não arrancando muitas gargalhadas, mas também sem deixar perder o interesse entre esses momentos de pico. Gedde Watanabe não fica atrás ao interpretar um personagem bastante interessante em Kaz, o mais “humanizado” da comitiva japonesa, um executivo que carrega o estigma da falha mas que mesmo assim não deixa de se preocupar com sua responsabilidade perante seus subordinados.

A dinâmica entre os dois personagens traz um paralelo interessante com outra comédia dirigida por Howard, Corretores do AmorAssim como a trama desta gira em torno das personalidades opostas de Chuck e Bill, temos em Gung Ho uma dinâmica análoga entre Hunt e Kaz (com a diferença que Keaton é quem recebe o centro dos holofotes aqui – para o benefício do filme). Tratam-se dos opostos entre o extrovertido despreocupado, que obteve sucesso na base do mais puro bullshit, e do introvertido esforçado que sucumbe perante exigências excessivamente rigorosas por parte de seus superiores. É deste encontro que surgem os melhores momentos do filme, que explora bem essas diferenças sob diversos ângulos sutis, e sob a tonalidade tanto do drama quanto do humor.

Nesse sentido é que a película dá conta de humanizar as diferenças culturais de modo a não deixar que se percam numa caricatura excessivamente generalizante. Os funcionários norte-americanos encarnam o individualismo e a preocupação consigo mesmos e com seu próprio bem-estar em primeiro lugar, enquanto que os japoneses trazem para eles a malquista ideia da “companhia em primeiro lugar”, o trabalho como o dignificador prioritário de suas vidas. Porém, na dinâmica entre nossos protagonistas vemos um pouco do outro lado das respectivas moedas: o compromisso com a equipe e com um trabalho de qualidade da parte do aparentemente despreocupado Hunt, e o lado individualista de um Kaz que quer sentido para sua vida para além do ofício.

Deste ponto também é compreensível o quanto as melhores cenas comédicas também são aquelas em que o choque cultural aparece pela lente da relação entre os dois (talvez com a exceção da descida da comitiva do avião, quando os japoneses tentam lidar com o tapete vermelho – impagável!). Destaque para as vezes em que Hunt se coloca em maus lençóis por não entender uma peculiaridade da cultura e língua japonesa, que é a da evitação da negativa direta – são várias as vezes em que o atrapalhado funcionário não consegue compreender a forma muito polida e indireta pela qual Kaz tenta negar suas sugestões, o que representa (até onde eu sei) uma dificuldade bastante real nessa comunicação intercultural até hoje.

A centralidade concedida à relação entre os dois é fundamental para sustentar os desfechos da trama, que como se pode esperar envolvem o vislumbre de algum tipo de compromisso possível entre as duas forças opostas em jogo, ou: o que os americanos podem aprender com os japoneses e vice-versa? O desfecho otimista encontra apoio justamente no crescimento pessoal convincente pelo qual vemos passar Hunt e Kaz, sempre sustentado por diálogos muito bem escritos e entregues de maneira precisa. As soluções finais podem não nos soar muito realistas (ainda mais pelo fato de que o contexto econômico é totalmente diferente hoje em dia), mas a sequência final é daquelas que os dramas oitentistas melhor sabem fazer, simplesmente de encher o coração com um drama leve e inspirador, auxiliado por uma trilha sonora fantástica.

No contexto de uma economia global já bem concretizada (e após quase duas décadas de estagnação econômica no Japão), as premissas centrais de Gung Ho nos parecem definitvamente datadas. No entanto, é notável que o filme funciona enquanto documental a respeito do imaginário da época em que foi feito e, ao mesmo tempo, enquanto sátira do choque cultural entre EUA e Japão que permanece em diversos pontos bastante atual e, com isso, com interesse conservado. Mais um drama com toques comédicos do que uma comédia com toques dramáticos, o filme rende sim bons momentos de humor, com diálogos bem escritos e situações bem montadas, mas é do lado do enredo e nas batidas dramáticas que se encontra seu maior sucesso – um pequeno clássico dos anos 80, que merecia sem dúvida ser mais lembrado.

Gung Ho – Fábrica de Loucuras (Gung Ho) – EUA, 1986
Direção: Ron Howard
Roteiro: Lowell Ganz, Babaloo Mandel, Edwin Blum
Elenco: Michael Keaton, Gedde Watanabe, George Wendt, Mimi Rogers, John Turturro, Soh Yamamura, Sab Shimono, Rick Overton, Clint Howard
Duração: 112 min.

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