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Crítica | Hannah Arendt

por Anthonio Delbon
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A parceria da diretora Margarethe Von Trotta com a atriz Barbara Sukowa toma traços novamente filosóficos em Hannah Arendt. Já vista no premiado Rosa Luxemburgo, de 1986, a questão política no entorno de uma filósofa convicta de suas posições é retratada, no presente filme, com maior sutileza e demora, até porque o próprio cenário onde a intelectual judia vivencia a maior polêmica de sua carreira exige um retrato mais cuidadoso da situação.

Mais do que uma biografia ou uma apresentação da complexa filosofia de Hannah, o filme foca um contexto específico da vida da autora de Origens do Totalitarismo, responsável por intensas consequências profissionais e pessoais. A escritora foi escolhida por um jornal de Nova York para cobrir o controverso julgamento de Adolf Eichmann, um dos participantes do exército nazista, que foi realizado em Jerusalém com transmissão para o mundo inteiro em 1961. Enquanto o próprio círculo acadêmico no qual Arendt sentia-se em casa tratava de comparar Eichmann à um monstro – inclui-se nesse grupo maioral de acusadores o próprio filósofo e amigo de Arendt, Hans Jonas, interpretado por Ulrich Noethen – a filósofa sentiu algo completamente diferente ao olhar para aquele homem prestes a ser condenado para a morte. Analisando suas respostas, em vez de encontrar um representante da monstruosidade e do cálculo frio que um vilão da humanidade comumente pressupõe, Hannah viu um homem burocrata, seguidor e leal ao seu serviço. Não viu ignorância, apenas uma ansiedade cotidiana de cumprir ordens, sem questioná-las. Foi exatamente com seu olhar apurado que a filósofa viu sintomas de um mal distinto do conhecido e divulgado até ali: não um mal demoníaco, pecaminoso, radical; mas sim, um mal banal.

Von Trotta trata com cuidado a figura de Arendt, sem coloca-la como qualquer tipo de gênio. Sem arrogância e demonstrando firmeza, Sukowa faz seu o papel e entrega discursos enérgicos e olhares penetrantes, que simbolizam bem o que Arendt via e o que ninguém mais enxergava: o julgamento de um homem, não de um sistema. O discurso compreensivo da filósofa, ao mesmo tempo incisivo, não apela para as dramaticidades que Von Trotta soube bem equilibrar cortando para cenas do julgamento real. Aos poucos, constrói-se o isolamento de Arendt da comunidade judaica e do círculo de intelectuais da época, beneficiado por um roteiro que se concentra em mostrar a figura da ensaísta com um senso de proximidade e individualidade superlativo em comparação a qualquer vontade de justiça universal ou amor pela humanidade, normalmente bradados e gesticulados.

Por não identificar em Eichmann a essência do antissemitismo clamada por tantos colegas seus, a própria filósofa foi tachada como antissemita e mal interpretada na sua compreensão do caso prático. Das dúvidas do jornal em publicar ou não o polêmico artigo até a impactante fala final de Hans Jonas, o filme consegue entregar uma mulher permeada de dúvidas no quente contexto em que vive, mas convicta o suficiente em suas posições bem trabalhadas. Muito contribui rápidos flashes de seu passado como aluna e amante de um dos maiores filósofos do século XX, Martin Heidegger, interpretado por Klaus Pohl. Suas falas parecem ficar guardadas na protagonista, o que passa uma sensação de que há terra firme nesse período turbulento. Como legítima seguidora de Heidegger, Hannah vê na reflexão um espaço para abrir o pensamento em vez de fechá-lo.

Pode-se argumentar, como um ponto negativo do filme, o próprio ritmo dado a narrativa. Vejo como exagero, todavia. A alternância de situações em que vemos Sukowa é uma estratégia bem utilizada para dar maior dinâmica em uma história focada, fundamentalmente, em diálogos políticos que, por vezes, tornam-se ríspidos. Consequências práticas gravíssimas não são mostradas, pois desde o início Von Trotta se importa mais em retratar como Arendt chegou às conclusões que marcaram o seu século e ainda são atualíssimas e menos na sua vida após o artigo ser publicado. Seu discurso final serve também como um ponto final para qualquer possibilidade de mudança, já que o filme passa rapidamente pelo dano gerado entre a publicação do artigo e sua última aula.

Com uma câmera recorrentemente filmando Arendt cada vez mais sozinha, a sensação de afastamento do círculo social fica latente. Da mesma forma o som ambiente vai desaparecendo aos poucos em cada cena da personagem, o que aumenta tal isolamento ao mesmo tempo que faz crescer a convicção introspectiva da pensadora.

Hannah Arendt narra uma história dramática e de importância incontestável para o pensamento humano do século XX, sabendo mostra-la com leveza e ironia suficiente para tornar uma questão política-filosófica acessível para qualquer um que caia sem querer nesse cenário. Exatamente por escolher um pequeno, porém determinante pedaço da vida de uma pensadora judia curiosamente aprendiz de Heidegger, conhecido adepto do regime de Hilter, é que o filme sabe elevar e mostrar a figura enérgica de Arendt, uma autora que passou por inúmeros episódios impactantes, incluindo a presença em campos de concentração. De líderes judeus aos próprios colegas teóricos, Arendt critica com coragem as posições discutidas em sua época utilizando Eichmann apenas como exemplo de um mal agora presente como um vírus, visto pela percepção humana, em um período pós-totalitário, de modo diferente do tradicional. Cortante, ela deixa uma pergunta que parece cada vez mais atual e que tentará responder em outra grande obra sua, A Vida do Espírito: a incapacidade de pensar pode gerar o mal? Ou ainda, o pensamento é capaz de nos impedir de cometer o mal?

Hannah Arendt (Hannah Arendt – Alemanha, 2012)
Direção: Margarethe Von Trotta
Roteiro: Margarethe Von Trotta e Pamela Katz
Elenco: Barbara Sukowa, Janet McTeer, Julia Jentsch, Axel Milberg, Timothy Lone, Megan Gay, Nicholas Woodeson, Tom Leick, Ulrich Noethen, Friederike Bechte, Klaus Pohl
Duração: 113 minutos

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