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Crítica | Hannibal

por Leonardo Campos
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A chegada de Hannibal após dez anos do sucesso de O Silêncio dos Inocentes instaurou uma polêmica na indústria cinematográfica em sua virada de milênio. De um lado, alguns massacraram a obra, considerando-a grotesca e excessivamente violenta, enquanto outros, mais compreensivos em relação ao novo patamar alçado dentro deste universo, conseguiram compreender o seu estilo. Em meu caso, tantos anos depois, consegui rever e perceber que meu sentimento de repulsa da época tornou-se fascinação. A experiência, como dizem, conta muito, e acredito que Hannibal tenha sido um filme muito mal interpretado na época de seu lançamento. A sua produção em si já foi bastante desafiadora. Primeiro, as idas e vindas dos produtores Dino e Marta Di Laurentiis para tentar convencer Jonathan Demme, Anthony Hopkins e Jodie Foster a retornarem só teve sucesso no que diz respeito ao intérprete de Hannibal Lecter. Tanto o cineasta quanto a atriz decidiram não se envolver com o material, considerado violento demais.

De fato, o romance de Thomas Harris é uma volumosa montanha-russa de emoções, com momentos intensos de morte, violência e menor sutileza que a obra antecessora, aposta que vejo como válida para um universo que precisava se reestabelecer numa época com novos tabus e estratégias diferenciadas de se fazer cinema. Caso optasse por adaptar fidedignamente o romance que serve como ponto de partida, o cineasta Ridley Scott e sua equipe de produção teriam problemas muito maiores para enfrentamento, afinal, o desfecho do livro, praticamente impossível de se tornar algo de cunho cinematográfico dentro do sistema de produção hollywoodiano é demasiadamente confuso, fora dos trilhos e exageradamente sobrenatural. Simplesmente, não funciona bem no livro em si e no cinema seria ainda mais catastrófico. O jeito foi adaptar. Steven Zaillian, convidado para a tradução intersemiótica, teve apoio de David Mamet em alguns pontos do material dramático, mas o veterano parece ter enfrentado problemas na produção e ao menos nos documentários e fichas técnicas oficiais, não aparece devidamente creditado.

A produção abre com os créditos iniciais de Nick Livesey, realizador de videoclipes e comerciais que convenceu Ridley Scott a inserir a sua proposta na abertura do filme. O resultado é bastante satisfatório e cria uma atmosfera que em si já coloca Hannibal como uma narrativa conectada ao universo do psiquiatra canibal e de Clarice Starling, mas adota novos modos de conceber as imagens, os sons e os seus personagens. Aqui, Hannibal passa a ser constantemente perseguido e, neste processo, sente-se intenso e com maior vivacidade. Na trama, dez anos se passaram desde que a astuta Clarice, agora interpretada por Julianne Moore, também muito competente, entrevistou o Dr. Lecter na instituição psiquiátrica de Baltimore. Na época, a investigação incluiu a busca por pistas que a ajudasse a capturar Buffalo Bill, assinante de crimes hediondos envolvendo mulheres robustas para costurar a sua roupa de pele humana, projeto que é parte das ânsias do perfil insano do personagem perturbado diante das negações da vida e do desejo de transformação de sua identidade.

Para quem lembra, uma das exigências do Dr. Lecter era uma prisão com janelas e alguma vista, bem como um cardápio mais sofisticado. Clarice captura Bill, após vários jogos psicológicos do psiquiatra que escapa e deixa para trás um rastro de sangue. Apesar de seu nível alto de perigo, ele pontua para Clarice que jamais irá em busca dela, afinal, a presença na agente do FBI no mundo é muito importante, por ela ser uma mulher notável. Esse detalhe, importante ressaltar, está no desenvolvimento desta continuação, pois a agente continua incorruptível, dedicada, ética e forte diante dos conflitos que enfrenta na polícia, em especial, as ações machistas de Paul Krendler (Ray Liotta), o seu superior hierárquico cafajeste que encontrará um destino bastante violento ao atrapalhar a trajetória de Clarice e mexer com o psicopata errado. Ainda para os que recordam, por ter escapado da prisão, Hannibal supostamente devorou um desafeto no final do primeiro filme e fugiu para a Europa, território onde atua como bibliotecário de uma família nobre de Florença.

Esperto, transita, mas nunca deixa vestígios. Sempre limpa as digitais em copos, talheres ou qualquer outro utensílio cotidiano. Rejuvenescido após alguns procedimentos estéticos, o canibal em vida discreta agora tem mais um novo desafio. Uma de suas primeiras vítimas, Mason Verger (Gary Oldman), pedófilo com histórico de sadismo, figura perturbadora que não esqueceu a situação envolvendo alucinógenos e um rosto desfigurado, responsável por mudar a sua concepção de mundo para sempre, tornou-se um obcecado por Lecter. Ele aproveita a situação problema envolvendo uma parada policial fracassada de Clarice, apresentada logo no começo do filme, para atrair a agente e, desta maneira, trazer Hannibal para mais perto, afinal, há um plano de vingança configurado na situação. Barney (Frankie Faison), o agente penitenciário que sempre respeitou Lecter, parece ter em seu acervo um amontoado de artefatos do canibal para comercializar e sobreviver além do salário básico que o sustenta. Um dos itens mais cobiçados por Verger é a famosa máscara, vendida na abertura da narrativa. É o mais próximo que ele pode chegar do psicopata que logo mais, poderá ou não ser a caça de seu projeto mirabolante de vingança.

Tudo se transforma numa empreitada complicada quando um policial italiano decide investigar Hannibal e o encontra em Florença. É quando o filme, em sua abordagem sociológica, nos apresenta a corrupção na polícia e na política. Destinado a capturar o canibal, ele acaba se tornando a caça e as coisas ganham outro rumo. De volta aos Estados Unidos, o Dr. Lecter é surpreendido pela equipe de Mason, torna-se um encarcerado momentaneamente, mas os planos de vingança de uma de suas primeiras vítimas não funcionam como o esperado. Solto, o psicopata que se encontra na lista dos mais procurados no mundo consegue empreender um jantar nada comum com Paul Krendler e Clarice Starling, culminando no desfecho controverso, mas coerente com a proposta adotada pela narrativa e por seu universo. Em sua lógica invertida do guerreiro e do inimigo, Hannibal escapa mais uma vez, mas antes precisa se desprender de algumas coisas bem importantes, em atos de coragem e respeito que demonstram a sua afeição por Starling. Cronologicamente, esse é o último encontro entre os personagens, com menor tempo de interação nos mesmos espaços cênicos, mas com química ainda irradiante ao longo de todo o filme.

Se o primeiro filme era de Clarice, o segundo é do Dr. Hannibal Lecter. Como já mencionado, o final do livro de Thomas Harris, lançado em 1999, foi considerado, nas palavras de Ridley Scott, “impossível de filmar”. O lance envolvendo Clarice como uma reencarnação da irmã de Hannibal e os dois como amantes da Argentina seria uma das coisas mais ridículas já filmadas. Sábio, o diretor contratado, que leu o roteiro e disse sim enquanto terminava as filmagens de Gladiador, exterminou esse trecho da história. Bom para o filme, e claro, para nós espectadores. Em linhas gerais, um dos pontos mais fortes deste filme é a fascinante figura de Hannibal, um sedutor personagem, participantes de diálogos inteligentes e postura erudita que é propositalmente paradoxal aos seus atos criminosos como canibal. É a sua presença enigmática, que nos cria curiosidade e por que não, algum fascínio.  Ao repetir o seu tom silabado com as palavras, tal como no filme anterior, Hopkins torna-se, definitivamente, um dos personagens mais envolventes do cinema moderno.

Se podemos dizer que há algum problema em Hannibal, talvez esse não seja exatamente o roteiro de Steven Zaillian, acusado de suspender as sutilezas em prol da violência mais gráfica. Essa talvez tenha sido uma escolha do cineasta Ridley Scott. Quando Hannibal, por exemplo, ensaia a vingança envolvendo o personagem interpretado por Ray Liotta, um policial cafajeste, a câmera segue o psiquiatra passo a passo na elaboração do seu plano. Não há surpresa, não há um clima de suspense, pois já não há dúvidas do que será possível acontecer, afinal, não só sabemos que Paul Krendler será jantar do canibal, mas até imaginamos como. Outro pequeno “porém” dramático que nos faz acreditar em certos fatos forçados do filme é a batida policial de Clarice. Ela se deu mal, mas cadê as testemunhas para comprovar que a personagem agiu de maneira certa, sendo esnobada pela equipe que estava no local? 2001 já demarcava uma era virtual bem presente em todo o mundo. E por fim, como Hannibal Lecter, um dos dez criminosos mais procurados do mundo, circula pela Europa tranquilamente, atua num local de pessoas intelectuais, provavelmente leitoras e pesquisadoras, geralmente informados sobre o que ocorre na cultura da mídia?

São pequenos detalhes que, para os mais exigentes, pode soar como ausência de respostas, mas acredito que tenha a ver com a proposta de inserção de elementos “fantásticos” e “sobrenaturais” do filme, afinal, Hannibal em si é uma entidade poderosa. Resolvidas, essas questões são apenas detalhes que não atrapalham na condução do filme. Ainda sobre o roteiro, temos que destacar as escolhas para compor Clarice, personagem que continua solitária, interpretada com muita dedicação por Julianne Moore, um camaleão versátil, atriz que deu conta do recado, afinal, substituir Jodie Foster não é uma missão para qualquer uma. Ademais, além dos bons elementos dramáticos, da direção firme e dos desempenhos do elenco, Hannibal também contou com excelentes profissionais no desenvolvimento de sua linguagem, tais como John Mathieson e Norris Spencer, eficientes na concepção da direção de fotografia e do design de produção do filme, uma narrativa com captação de imagens virtuosamente iluminadas e com cenários deslumbrantes.

Ainda no que tange aos aspectos técnicos, esse clima charmoso é resultado do cuidadoso trabalho fotográfico e cenográfico, mas temos também a geografia espetacular de Florença, espaço para uma parte da história, local com passado medieval de violência ideal para compor a atmosfera de erudição, corrupção e crime que envolve os personagens. A trilha sonora de Hans Zimmer é outro acerto, não sendo operística como o trabalho de Howard Shore no antecessor, mas conseguindo trazer para a história um tom diferenciado, próprio, igualmente funcional para o filme que nos é apresentado. Além das Variações Goldberg, de Bach, há uma versão do clássico Danúbio Azul ao acompanhar uma cena do desfigurado Mason Verger, passagem irônica, tal como personagem que intitula a história. A montagem, também muito eficiente, é bem regulada e consegue dar um clima dinâmico ao filme, com escolhas ousadas e apostas que demonstram a busca pela construção de algo artisticamente audacioso, sem amarras para agradar a determinada fatia de público. É um épico de 131 minutos, intenso, violento, sagaz, ponto alto deste universo cinematográfico oriundo da literatura, construído com personagens coesos e estética virtuosa. Como o seu antecessor, é uma instigante aula de linguagem cinematográfica, ao seu jeito.

Hannibal (Hannibal, EUA – 2001)
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Steve Zaillian (baseado no romance homônimo de Thomas Harris)
Elenco: Anthony Hopkins, Julianne Moore, Giancarlo Gianinni, Gary Oldman, Ray Liotta, Frankie Faison, Francesca Neri, Zeljko Ivanek, Hazelle Goodman, David Andrews, Francis Guinan, James Opher, Enrico Lo Verso, Ivano Marescotti, Fabrizio Gifuni, Alex Corrado, Marco Greco, Robert Rietty, Terry Serpico, Boyd Kestner, Peter Shaw
Duração: 131 min.

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