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Crítica | Happy End (2017)

por Marcelo Sobrinho
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A exibição do mais novo filme de Michael HanekeHappy End – no Festival de Cannes de 2017 foi aguardada com a expectativa de que o diretor austríaco pudesse se tornar o primeiro a vencer três Palmas de Ouro em toda a história do festival. Se levarmos em conta as obras de excelência que Haneke já levou às telas, torna-se até natural esperar que ele pudesse alcançar o feito com mais um filme brilhante. Suas duas conquistas na premiação francesa – por Amor e A Fita Branca – foram incontestáveis. Mas quem esperava pelo conhecido aturdimento provocado por mais um grande filme se surpreendeu. Não digo que Happy End seja um filme ruim. Não, não é. Mas é, sem dúvidas, um ponto fora da curva dentro de uma filmografia tão marcante. Nota-se que estamos diante de outro diretor, realizando um filme à margem de seu próprio estilo. Não questiono que Haneke tenha todo o cabedal para subverter a si mesmo, mas sua mudança de rota, dessa vez, esmoreceu bastante no impacto causado.

Sente-se na história dos Laurent, uma abastada família industrialista de Callais, a ausência dos principais traços hanekenianos. O cinema do austríaco sempre manteve grande coerência com seu discurso de restabelecer a capacitação do espectador, mal acostumado a um cinema fácil. As quebras de quarta parede de Funny Games fizeram isso muito bem. A omissão da ação, que ocorre à distância e quase sempre fora do quadro, em A Fita Branca, também exigiu do público uma boa dose de imaginação e inteligência para completar o que o filme se negava a lhe revelar. A participação do espectador na construção do extracampo sempre foi uma grande força motriz do cinema de Michael Haneke. Mas, em Happy End, ele parece simplesmente ter desistido da própria lógica para construir um filme fora de seus padrões ao abordar mais uma família em crise e, agora, utilizando como subtexto a atual crise dos refugiados na Europa.

Os cortes secos e a câmera estática continuam presentes no repertório do diretor, mas são bem menos incômodos e reveladores. É estranho pensar que os planos que mais me provocaram desconforto foram os primeiros, que emulam a tela de um celular e cuja sequência narra o fato que motivou a chegada de Eve (Fantine Harduin) à família Laurent. Ali se sente a mão do cineasta provocador que conhecemos, conduzindo mais uma personagem improvável a um paroxismo de violência (em Amor, um idoso frágil e cansado, movido pelo amor à esposa; em Happy End, uma menina que vive, na prática, como uma órfã de pais vivos). No restante do filme, contudo, Haneke apenas reduz e fraciona a dose de desesperança que era tão alta e sentida em seus filmes anteriores. O resultado é que o longa-metragem não dá nenhum salto relevante de qualidade ao longo de seus 107 minutos. O cômputo geral é morno e frustrante, ainda que o austríaco consiga preparar todo o cenário de uma história possante, com bons personagens e que oferecem muitas possibilidades, mas que não são levadas adiante.

Se há um adjetivo que se experimenta no novo filme de Michael Haneke, ele é a apatia. Há até algumas poucas cenas que lembram os procedimentos estéticos próprios do diretor. Georges, interpretado por Jean-Louis Trintignant, vai até a garagem da casa para buscar o carro com o qual ele tentará um suicídio frustrado. Ele entra e sai do quadro, com a câmera estática e toda a ação que se passa por alguns segundos dentro do automóvel ocorre distante e excêntrica. Típico de Haneke. Mas é incrível notar que a banalidade da ação não envolve o espectador em nenhum drama persuasivo do personagem. O que dera tão certo em filmes anteriores aqui parece apenas um cacoete estéril de seu diretor. Sem pujança nem capacidade de sustentar questões maiores. Os instintos suicidas do patriarca lamentavelmente só ganharão algum relevo na cena final. Georges é uma continuidade do protagonista de Amor. Mas se o marido do filme de 2012 tinha diante de si questões muito mais reais e importantes, o patriarca do novo filme é esquadrinhado apenas como um idoso cansado e suicida. Apático e vazio.

Anne e Thomas Laurent, interpretados por Isabelle Huppert e Mathieu Kassovitz, respectivamente, são dois personagens que Haneke mantém devidamente engessados para que sirvam facilmente a seu discurso pronto – ele, um pai inabilidoso e um marido infiel e ela, uma mãe que luta contra o desajuste emocional do filho. Pierre Laurent é o elemento da família que busca fugir da morbidez tácita que domina as gerações superiores. O mesmo pode ser dito da jovem Eve, que dirige ao pai uma das falas mais duras e poderosas do filme (um dos poucos diálogos dignos de nota em Happy End). Michael Haneke trabalha com um choque de gerações óbvio, em que os mais novos conseguem romper com a placidez dos mais velhos. O subtexto geopolítico pode ser lido aqui como duas Europas que se atritam. A primeira é a antiga, na iminência de desaparecer e representada pelo suicida Georges e pelos autômatos Anne e Thomas. A segunda Europa é a nascente, que irrompe melancólica, ressentida e desenhada em Eve e Pierre. Haneke esboça bem suas intenções, mas seus personagens são opacos demais para dar conta de um discurso tão maior do que eles mesmos. O cineasta austríaco apenas os instrumentaliza e, estranhamente, não se preocupa em apresentá-los como partes mais complexas de um todo.

Os arcos dramáticos de Happy End, marcados pelo sentimento de incomunicação e isolamento, são unidos por divagações do diretor sobre as redes sociais e a necessidade de ver o mundo pela tela de um celular. Os personagens do longa-metragem parecem não confiar no que seus olhos vêem. Preferem olhar sempre para longe de si mesmos – algo que está claro em um dos fotogramas mais conhecidos do filme, em que todos estão sentados ao redor de uma mesa e absortos pelo vazio do extracampo. Novamente, surge a camada geopolítica como possibilidade de leitura. A Europa vive uma sucessão histórica (entre o passado e o presente) marcada pela incompreensão mútua. O resultado dessa dupla leitura poderia ter sido mais uma obra-prima de Michael Haneke. Mas o problema de seu mais novo filme é ter se tornado uma empreitada em que o que dá certo não dura. O que punge se esgota com a mesma efemeridade do mundo virtual que o austríaco nos apresenta. E, lamentavelmente, parecem ser ainda mais transitórios os momentos em que Haneke consegue ser ele mesmo.

Happy End – França, 2017
Direção: Michael Haneke
Roteiro: Michael Haneke
Elenco: Jean-Louis Trintignant, Isabelle Huppert, Mathieu Kassovitz, Fantine Harduin, Frans Rogowski, Hassam Ghancy, Laura Verlinden, Lawrence Bradshaw
Duração: 107 minutos

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