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Crítica | Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, de J.K. Rowling

por Cida Azevedo
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Para quem pertenceu à “geração Harry Potter”, como eu — isto é, cresceu lendo os livros da série e ansiando pelos próximos lançamentos — falar criticamente da saga d’O-Menino-Que-Sobreviveu é uma tarefa um tanto ingrata. A obra de J.K. Rowling ocupa um lugar especial, ligado à memória afetiva de toda uma geração, que inclusive se mostra benevolente em relação a eventuais falhas e defeitos da saga. Um bom exemplo disso é a euforia em torno de Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, lançado em julho de 2016, que apesar de suas inúmeras imperfeições, ganhou muitos leitores simplesmente pela oportunidade de lhes mostrar, mais uma vez, o mundo mágico e seus amados personagens.

Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, no entanto, não precisa de condescendência para ser considerado um grande livro — com certeza, um dos melhores da série. O terceiro volume dos sete originais é marcado por um grande salto de amadurecimento em relação aos dois primeiros, tanto em relação à linguagem como em relação ao enredo: Rowling “cresceu” com seus leitores e seus personagens principais. Também é em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban que somos introduzidos a diversos elementos essenciais para a série, que são tão emblemáticos do universo Harry Potter que é difícil lembrar que não existiam nos primeiros volumes: Sirius Black, vira-tempo, mapa do maroto, dementadores, patronos, animagos — que, vale destacar, não são introduzidos aleatoriamente, mas muito contribuem para as reviravoltas que marcam a trama. Também é nesse terceiro tomo que Harry e seus amigos chegam à adolescência, o que permite a introdução de subtramas de outra natureza, que serão melhor desenvolvidas em Harry Potter e o Cálice de Fogo, o volume seguinte.

Diferente do que é costumeiro em obras de fantasia, Rowling não é descritiva em excesso. Desde o início da saga, Harry Potter mostra uma excelente articulação entre enredo e descrição. Em vez de introduzir cansativas explicações sobre elementos do universo mágico, Rowling consegue diluir esse tipo de explanação na própria ação. É comum que acompanhemos aulas em Hogwarts sobre temas que serão importantes mais à frente, por exemplo. Em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, é o que acontece com animagos e lobisomens. Essa estratégia é bastante interessante porque, além de tornar a leitura mais fluida, dá aos leitores a sensação de pertencimento ao universo, já que se aprende junto com as próprias personagens.

 Em Azkaban também há um componente significativo no que toca à condução da trama: a presença de pistas. Semelhante ao que ocorre em romances policiais, o livro é recheado de detalhes que podem parecer irrelevantes a um leitor desatento, mas que ao final (ou numa eventual releitura) adquirem importante significado. Nesse sentido, destaca-se a atarefada Hermione, com seus horários de aulas malucos (“9h Adivinhação / 9h Aritmancia”) e seus confusos sumiços — que serão explicados pelo vira-tempo. Também há pistas menos desejáveis e menos necessárias, como o nome do professor Remo Lupin, mais tarde revelado lobisomem (“Remo”, na mitologia romana, foi amamentado por uma loba; “lupin” é justamente relacionado à origem da palavra “lobo”). Uma das críticas comuns à Rowling, aliás, é a estereotipagem dos nomes de muitos de seus personagens, o que se confirma nesse caso.

Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban é mais sombrio que seus antecessores, iniciando um processo que irá se intensificar nos volumes seguintes. A esse respeito, vale comentar acerca da simbologia de alguns personagens, dentre os quais se destaca o dementador. Descritos como criaturas que sugam a felicidade à sua volta, os dementadores são sentidos até pelos “trouxas” — que, no entanto, não podem vê-los. Quem tem contato com essas criaturas sente “que nunca mais vai ser feliz novamente”. Assim, os dementadores tornam-se representativos de algo que as pessoas comuns também sentem: a depressão. Rowling, inclusive, já estabeleceu essa relação. Em contrapartida, o patrono — antídoto contra dementadores — é uma projeção de felicidade que é capaz de proteger aquele que o conjura. Essa relação é muito interessante tendo em vista que o público-alvo de Rowling é infanto-juvenil e está numa fase em que muitas vezes é difícil lidar com as próprias emoções. Nesse contexto, essa personificação é fascinante.

Considerando que a verossimilhança de uma obra de ficção se dá não só pela coerência interna, mas também pela semelhança com a realidade, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban é bastante crível. Além dos elementos já citados — adolescência, depressão — merece destaque a importância da política. O ministério da magia, na figura de Cornélio Fudge, começa a delinear sua imagem de pouca competência, interesse e jogos de poder acima da justiça e flexibilização no cumprimento das leis quando conveniente. A busca frustrada pelo fugitivo Sirius Black e o caso do julgamento do hipogrifo são emblemáticos a esse respeito, bem como a indulgência com Harry no caso da transformação da tia em um balão (!). Também nesse caso, os próximos volumes da série aprofundarão o tema.

Por fim, merece nota a temática da viagem no tempo. Embora comum no universo da ficção (como, aliás, muitos elementos de Harry Potter), o retorno ao passado ganha uma identidade específica nas mãos de Rowling, por meio do maravilhoso instrumento vira-tempo. Nas mãos de Hermione, o objeto que define os rumos da história aponta para uma noção de tempo cíclica; assim, antes do retorno, o presente conhecido já havia sido influenciado por ele — o que fica claro na cena em que Harry finalmente conjura seu patrono corpóreo. Essa interpretação do tempo e de sua manipulação é muito bem construída no livro, praticamente sem pontas soltas (“praticamente” porque causa estranhamento ao leitor o fato de, ao retornar, Hermione e Harry estarem num lugar diferente do que estavam tanto no presente quanto no passado). É compreensível, portanto, que vários leitores tenham se decepcionado com o uso do vira-tempo no recente Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, que é pouco convincente ao subverter a configuração desse objeto, tão bem construída em Azkaban.

Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban é um divisor de águas na saga Harry Potter. Responsável por nos apresentar elementos sem os quais não imaginamos mais esse universo, por trazer personagens e autora mais maduros, pelo que talvez seja a maior revelação da saga — a cena na Casa dos Gritos — Azkaban é um grande livro. Na leitura de edições mais antigas, a revisão deixa um pouco a desejar, mas nada que prejudique a compreensão da obra. Sem dúvida, Rowling se supera em relação aos primeiros volumes – quiçá em relação aos últimos também, pois não é difícil encontrar quem ache Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban o melhor livro da série que conquista gerações desde os anos 2000.

Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban (Harry Potter and the Prisoner of Azkaban) – Grã-Bretanha, 1999
Autor: J.K.Rowling
Publicação: Editora Rocco, 2000
348 Páginas

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