Home QuadrinhosArco Crítica | Homem Animal #51 – 56: Carne e Sangue (1992)

Crítica | Homem Animal #51 – 56: Carne e Sangue (1992)

por Luiz Santiago
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A natureza é cruel, é desperdiçadora, mas existe igualdade na infinita variedade de seu apetite. Tudo que incorpora vida é comida para alguma outra coisa. O que desequilibra tal banquete anárquico é a relutância da humanidade em contribuir pro caldeirão. Pensam que o organismo do mundo existe para sustentar só a eles; pudessem, comeriam a todos nós.

Buddy, encarnado como Quimera

SPOILERS!

Após as mudanças confirmadas e as consequências deixadas por Tom Veitch no arco O Significado da Carne, onde encerrou o seu run na revista do Homem Animal, dois grandes problemas imediatos precisavam ser resolvidos pelo escritor que assumiria o título, no caso, Jamie Delano. Primeiro, o “desaparecimento” de Cliff, que passava o inferno nas mãos do sádico tio Dudley; depois, a base incorpórea do Homem Animal. Após o tio Dudley ter atropelado e estraçalhado o corpo de Buddy Baker, a consciência do personagem se expandiu e foi experimentando diversas formas de vida através do contato especial com o Vermelho (aqui vale tanto a interpretação metalinguística e sci-fi de Origem das Espécies quanto a versão xamânica de Significado da Carne, fica a gosto do leitor escolher uma delas ou interpretá-las como parte de uma formação só como chave para o Campo M ou Vermelho).

Delano se utiliza de sua tendência para histórias de terror e avança pelo terreno das estranhezas, do sofrimento, do horror psicológico. Ele tira de cena qualquer nuance relacionada ao super-heroísmo e faz com que o leitor enxergue outro tipo de inimigo aqui, já que a rigor, a história não tem um vilão. Vendo por este ponto, o comportamento de Dudley é apenas uma das faces da moeda que a teia da vida gera, ou seja, as criaturas que saem da árvore tanto podem ser boas quanto más. Dependendo de sua formação ou das coisas que farão ao longo da vida, certos componentes negativos originais da carne podem ser ativados ou não. Esse “bem” e “mal” é apenas uma forma clichê e rasa de olhar o que acontece nessa história porque os dois conceitos fazem parte de todo o sangue que corre nos animais do planeta e cada espécie, diante de sua capacidade, irá lidar com eles dentro de suas capacidades e possibilidades.

A palavra mais correta para definir o trajeto aqui é equilíbrio e isto completa o flerte de Delano com Alan Moore em Lição de Anatomia, propondo um renascimento para o Homem Animal a partir dos próprios ingredientes da fonte de seus poderes. E há também uma clara relação com Regênese, de Rick Veitch, na constante reafirmação de um balanceamento natural, na força e fúria da natureza, na composição, aceitação e rejeição de corpos e na responsabilidade que cada ser vivo tem consigo mesmo e com os outros, sejam ou não parte de sua espécie. Ao longo de todo o arco essa discussão e a longa viagem pelas teias invisíveis que formam a presença do animal, lhe dão vida e uma “missão” na Terra são palmilhadas por nós e pelo Homem Animal, tendo reflexos no cotidiano diante da dor e do luto (na fazenda da mãe de Ellen) e diante do exercício da maldade, de um culto ou de uma má interpretação do que é e como devemos no relacionar com essa teia (no bloco do tio Dudley).

plano critico o vermelho homem animal

O Vermelho. A “alma” de tudo o que tem sangue em nosso planeta.

Com o passar das edições entendemos que Delano não se serve apenas de algumas grandiosas referências temáticas da revista Monstro do Pântano para empreender um nascimento. Ele cria de modo muito inteligente a sua própria mitologia de organização da vida, tornando coerente a interpretação dessa dinâmica para a carne, em oposição ao domínio do Verde. Aliás, a agressividade entre as duas vertentes é imensa e explorada sob diversos aspectos, nunca perdendo de foco a transformação e vontade de Buddy em voltar a ter um corpo e o rearranjamento de sua vida familiar que vai de mal a pior, especialmente agora que ele não mais existe. Ou melhor, não existe da forma que pode ajudar a administrar uma família.

A partir da edição #53 (Desespero) a fluidez da vida como um rio heraclitiano é paulatinamente utilizada no texto para desenvolver os personagens coadjuvantes. Vemos o total desalento da mãe de Ellen ao observar todas as bizarrices acontecendo à sua volta; vemos o amor de Ellen por Buddy e a força que ela tem para superar a morte do marido rapidamente e correr atrás do filho com quem foi (juntamente com Buddy) negligente, uma noção fortemente destacada na série a partir de Réquiem Para uma Ave de Rapina; o aprendizado, sofrimento e alegrias de Maxine, a Asa Pequena, ao lidar com o pai em corpo de libélula, Triceratops (o “Dino Rino” fêmea que Maxine trouxe de sua viagem aos pés da Árvore da Vida) e Quimera (ou algo parecido); e o grande trauma e abuso que Cliff sofre nas mãos do tio, sendo forçado a caçar, matar, passar fome e cercar-se de elementos macabros para atender a uma demanda emocional do infame familiar, cuja história com Cliff começou muitas décadas antes, quando a mãe do garoto ainda era uma criança.

Os eventos da edições Pulsação e Encarnado fecham perfeitamente a história. Delano escolheu o ponto de retorno de Buddy a partir de um material genético colhido desde o início do arco, mais uma vez mostrando o fato de a vida seguir caminhos inesperados para se fazer. Como a arte de Steve Pugh é completamente suja, cheia de caras de desespero e dor, como se a qualquer momento alguém fosse ter um colapso nervoso (as expressões e indicações de delírio, sono, febre, lágrima ou mesmo doença tornam a temática da obra ainda mais crível, porque o sofrimento dos personagens é imediatamente percebido pelo leitor, fator reafirmado pelas cores de Tatjana Wood no Vermelho e na fauna real da Terra) nós sofremos junto com eles e esperamos que este horror de momento seja logo superado. Carne e Sangue é um olhar para dentro do Homem Animal e um convite para analisarmos a nossa própria espécie sob o ponto de vista da natureza ou de Deus.

plano critico homem animal ellen e buddy cliff

O instinto de sobrevivência sob dois pontos de vista: o cuidado “materno” e o consumo puro e simples.

O final da última edição traz um pequeno adendo com arte de Russell Braun. Nele, temos os desenhos e uma pequena história de Cliff sobre o Kannibal Kid, um garoto vivendo em um mundo pós apocalíptico que já na primeira parte traz algo chocante: ele comeu os pais para sobreviver. Delano não deixa apenas sugerida a terrível recente experiência do garoto mas coloca isso como parte da existência dele, nas brincadeiras com a irmã (com um fundo de verdade, como sempre) e nas histórias de terror que escreve e desenha, claramente uma transposição fictícia de suas experiências ao lado do tio. Assim como o pai e a mãe, Cliff provou os muitos caminhos possíveis que o instinto humano pode percorrer para preservar a vida. E assim como eles, não está livre de cicatrizes externas e internas. Um brinde de toda a experiência da carne inteligente.

Homem Animal: Carne e Sangue (Animal Man Vol.1 #51 – 56: Flesh and Blood) — EUA, 1992 – 1993
No Brasil:
 Panini Comics, 2017
Roteiro: Jamie Delano
Arte: Steve Pugh (Russell Braun — apenas na parte final, Metamorfose)
Cores: Tatjana Wood
Letras: John Costanza
Editoria: Tom Peyer
Capas: Brian Bolland
191 páginas

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