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Crítica | Homem-Aranha: A Saga Original do Clone

por Giba Hoffmann
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Contém spoilers referentes ao arco!

Revisitar a assim chamada Saga Original do Clone é um exercício de discernimento ao leitor que já experimentou alguma dose dos quadrinhos do Homem-Aranha de meados dos anos 90, onde a temática da clonagem e suas subsequentes reviravoltas estapafúrdias praticamente substituíram temporariamente a raison d’être do herói aracnídeo. O dever heróico deu lugar ao mais absurdo debate a respeito de ética em engenharia genética que a ficção superheróica noventista poderia vir a produzir. Grandes poderes e grandes responsabilidades deram lugar a uma novela barroca envolvendo crises de identidade de múltiplos níveis, com viradas semanais que sugeriam algum tipo de competição interna entre os roteiristas visando a última palavra em quesito de complicação da trama. A Saga do Clone permanece hoje como um tema relativamente quente no meio dos quadrinhos, sustentando detratores mas também tendo conquistado com o tempo uma consistente e inesperada apreciação.

O que chamamos de Saga Original do Clone refere-se ao arco maior que perpassa o terceiro e último ano de Gerry Conway à frente do roteiro de The Amazing Spider-Man, envolvendo o novo e misterioso vilão Chacal e suas experiências genéticas nefastas. Recebendo do próprio autor, na capa da edição #149, o nome hilário de “Guerra Aranha-Chacal”, a alcunha de “Saga Original do Clone” surge apenas a partir de uma leitura feita já sob a perspectiva do infame arco que, duas décadas depois, retomaria a trama do clone de Peter Parker apresentada aqui e a elevaria à enésima potência.

Ao contrário do que ocorreria no evento noventista, aqui o foco não se encontra na complicada prole genética de Peter Parker e nas conspirações e reviravoltas que a circundam, mas sim no ressurgimento inesperado de Gwen Stacy e nas tramoias do insano Chacal em sua perseguição fanática a um insuspeito Homem-Aranha. Tudo se inicia com a primeira aparição do tresloucado vilão canino em The Amazing Spider-Man #129, onde divide os holofotes com o também estreante Justiceiro, contratando-o para dar cabo do Homem-Aranha, aproveitando-se das acusações de assassinato que recaíram sobre o herói desde a fatídica batalha final contra o Duende Verde. Seguem-se então combates contra o Cabeça-de-Martelo, o infame Urso, Escorpião e Tarantula, todos motivados pelas maquinações de Chacal, que assume aqui um papel semelhante ao do Duende Verde em sua primeira sequência de histórias: um supervilão verde e de aparência perturbadora que planeja nas sombras e atiça outros supervilões a perseguirem nosso herói, enquanto que sua identidade e motivos pessoais permanecem envoltos em mistério.

Concomitante a essa perseguição temos o misterioso ressurgimento de Gwen Stacy, namorada de Peter morta há dois anos em um confronto entre o Homem-Aranha e o Duende Verde. Sua aparição é tão inesperada que manda Tia May direto para a UTI, tamanho o susto que a resiliente idosa recebe ao vê-la na rua, na edição #144. Recém-chegado do confronto contra o Ciclone na França, Peter também acaba sendo tomado de surpresa pelo ressurgimento da saudosa amada. Compreensivelmente tendo dificuldades para aceitar a possibilidade de que se trate da verdadeira Gwen, ele acaba utilizando-se de sua vida como Homem-Aranha como válvula de escape para a tensa situação em que se encontra. Enquanto que as tramóias do Chacal rendem subtramas de ação interessantes e muito bem executadas, o leitor se vê às voltas com um drama consistente acompanhando Peter no lidar com os efeitos da tragédia que ainda o assombra.

Embora isso não fique claro na ocasião, já na primeira aparição do Chacal temos um prenúncio da ligação íntima entre o surgimento do vilão e os acontecimentos trágicos de A Noite em que Gwen Stacy Morreu e A Última Cartada do Duende. A importância dessas histórias seminais foi tamanha, para muito além do próprio universo aracnídeo, tornando-se inclusive um marco para a mídia e o gênero como um todo, que não é nem um pouco difícil imaginar que o restante da fase sob a caneta de Conway não conseguiria se distanciar da sombra de suas próprias obras-primas. Soma-se a isso o fato, relatado pelo próprio roteirista, de que a trama surgiu a partir de uma ressurreição de Gwen Stacy editorialmente encomendada por um Stan Lee insatisfeito com a audácia do jovem escritor em permitir a morte da personagem, e pode-se perceber que o time criativo lidava com uma situação desafiadora, mas que trazia potencial para explorações interessantes. Levar em conta essa conjunção delicada de fatores não apenas lança luz sobre alguns dos problemas do arco, mas também reveste de importância algumas das qualidades centrais da Saga Original do Clone.

A principal e mais importante delas: trata-se de uma coleção de histórias genuinamente divertidas. Leitura fluida e extremamente envolvente, a conjugação da escrita de Conway com a arte de Ross Andru se prova como um momento ótimo na cronologia do herói aracnídeo. O roteiro de Conway é coeso e econômico, confiando a narrativa às imagens e evitando a verborragia típica de um Stan Lee ou de um Roy Thomas, para o benefício da arte e do fluxo das cenas, que respiram melhor sem a chuva de caption boxes e balões que era ainda muito comum à época. No que cabe à arte, Andru segue uma linha de trabalho que procura recriar os designs de personagem imortalizados por John Romita, com resultados bastante competentes e que, embora possa ser um contra-senso, em meu ponto de vista ultrapassam os de seu antecessor Gil Kane. Embora possa-se dizer que o trabalho de Andru apresenta alguns estilismos que podem desagradar um leitor mais ortodoxo (como os olhos e as expressões faciais um tanto exageradas e as poses excessivamente teatrais), é certo que eles funcionam para a história contada aqui, retratando bem a loucura do Chacal e um Peter um tanto quanto paranóico de forma bastante leve e expressiva.

As cenas de luta são renderizadas com precisão, fazendo bom uso da narrativa visualmente rica do roteiro de Conway. O combate com o sonso Ciclone ganha um interesse especial ao se aproveitar da localização inusitada de Paris, e acaba por funcionar melhor do que deveria com os quadros amplos e arte de página inteira que são marca do estilo da dupla. Também ganha pontos pela bravataria nacionalista entre os norte-americanos e franceses, com a solução absurdamente galhofeira dada pelo Aranha para o conflito funcionando como a cereja do bolo. O sub-arco com o Escorpião também traz momentos marcantes no quesito, com boas cenas de ação para o insidioso Mac Gargan, com destaque para o combate contra o Aranha que se inicia em um andar elevado do hospital de Tia May e continua nas alturas de Nova York, com o herói habilmente enganando o supervilão, fazendo-o pensar que procurava derrubá-lo apenas para forçar sua rendição. A luta contra o Tarantula também agrada visualmente, em especial na sequência que acontece no escuro, sob a luz apenas do aracno-sinal.

Intercaladas às boas cenas de ação, temos uma boa exploração da vida civil de Peter Parker e um ótimo uso do elenco de apoio, com uma caracterização forte e segura de figuras como Mary Jane, Tia May, Anna Watson, J. Jonah Jameson, Joe Robertson, Betty Brant e Ned Leeds. Mesmo as aparições mais breves dos personagens são pontuadas pela boa caracterização destes clássicos de Stan Lee, fato que não deve ser dado por garantido, como a história da franquia viria a provar. Temos vários bons momentos de personagem, com destaque para a tríade Peter – MJ – Tia May. A cena com Peter e Tia May no hospital, embora seja um lugar comum para a série, traz uma delicadeza incomum ao mesmo tempo em que brinca com o próprio clichê, antes da entrada estrondosa do Escorpião pela janela. Tia May conversando com Mary Jane sobre o relacionamento dela com Peter é impagável, de um carisma sensacional e mostrando o lado mais ativo de May Parker de uma forma muito interessante, décadas antes da ótima releitura do universo Ultimate. Todas as cenas do casal também são boas, explorando a situação de ambos personagens e suas personalidades contrastantes – destaque para o beijo no aeroporto, seguido pela bela página com a decolagem do avião. Esses breves momentos sutis pontuam bem o desenvolvimento de resto predominantemente focado na ação das histórias.

A parte menos explorada da sequência de histórias acaba por ser, ironicamente, a que envolve a conspiração de clones orquestrada pelo Chacal. O aparente retorno de Gwen Stacy começa promissor, em especial com a inusitadamente divertida splash page da edição #145, com um Peter em choque, praticamente em posição fetal na escadaria após avistar a namorada ressucitada, com a sombra de um Homem-Aranha fantasmagórico afirmando para ele que se trata provavelmente de um surto ocasionado pela loucura de sua vida superheroica. Toda a reação do protagonista é interessante para muito além da simples negação, sua explosão inicial remetendo à paranóia compreensível de se tratar de mais uma armadilha feita por algum supervilão, mas em seguida evoluindo para a desnorteante possibilidade de se tratar de um retorno da verdadeira Gwen, e a forma como isso bagunça seu mundo já suficientemente caótico.

A ideia da ressurreição repentina de uma pessoa e todas as ramificações realisticamente dramáticas que isso poderia ter na vida  de seus outros significativos, explorada recentemente de forma brilhante em Les Revenants, é uma vertente de ficção especulativa dificilmente explorada nos quadrinhos de super-herói, onde o retorno da morte comumente serve mais como dispositivo de trama e meio do que como tema ou história em si. Temos traços dessa subtrama nas poucas cenas dividas por Peter e Gwen e em especial na forma como o aparente retorno impacta o relacionamento engatinhante de Mary Jane e Peter. Infelizmente fica claro que este não é o foco dos autores aqui, e o retorno Gwen é jogado inicialmente de escanteio, rapidamente se encaminhando para um desfecho decepcionante que desperdiça o potencial do ocorrido.

As investigações a respeito da aparente ressurreição levam Peter e Ned direto para uma elaborada armadilha montada por Chacal, com o auxílio do Tarantula, onde o Aranha acaba frente a frente com seu próprio clone. Apesar de contar com boas cenas de ação, a trama deixa um tanto a desejar quando degenera na história assombrosa da obsessão horripilante do professor Miles Warren por sua jovem aluna falecida. A partir do repentino arrependimento de Miles, após confrontado por sua amada criação, temos o sacrifício do Chacal para salvar Leeds e a aparente morte do Aranha-Clone, com o foco do desfecho movendo-se para a crise de identidade do Aranha sobrevivente em saber se se trata dele mesmo, ou se o verdadeiro Peter morreu e ele é na verdade o clone.

Deixando de lado o absurdo da ciência genética do Chacal, que cria clones humanos adultos com as memórias do original até o ponto exato que interesse a ele, o fato é que o clone de Gwen preserva a memória e personalidade da original, e seu envolvimento no esquema do Chacal faz com que ela descubra a verdade sobre Peter ser o Homem-Aranha, sem que isso mereça menção alguma por parte dos personagens. A despedida dos dois também se dá de forma fria e um tanto repentina, ainda que deixe em aberta a possibilidade de revisitação da personagem e dos conceitos em torno dela – se isso é bom ou ruim, fica a cargo do leitor. No todo, trata-se de um encerramento abrupto para a ótima fase de Conway à frente do título. Temos ainda, na edição #150, um epílogo com Peter se vendo às voltas com a crise identitária ocasionada pelo conflito contra o clone, roteirizada por Archie Goodwin e com desenhos de Gil Kane, onde presenciamos uma fraca resolução que equivale a um duplo mortal carpado lógico para o dilema.

A Saga Original do Clone tem sucesso em entreter com leveza, trazendo ideias complexas e conceitos mais dramáticos da história do Cabeça de Teia em uma roupagem mais galhofeira do que nos arcos clássicos pelos quais a fase de Gerry Conway seria merecidamente melhor lembrada. Não sendo necessariamente uma leitura essencial, a história entretém mais nas tramas episódicas do que no grande arco do Chacal, cujo desfecho fica aquém das possibilidades levantadas. Mesmo assim, trata-se de uma leitura bastante interessante, em especial aos apreciadores da divertida loucura que são os quadrinhos do meio dos anos 70.

Homem-Aranha: A Saga Original do Clone (Spider-Man: Clone Genesis)
Nos EUA: The Amazing Spider-Man (v1) #129, #143 – #150 (Fevereiro/1974;  Abril/1975 até Novembro/1975)
No Brasil:
 Homem-Aranha (RGE)  #29 – #32 (Maio/1981 até Agosto/1981); Teia do Aranha (Abril) #29 – #31 (Fevereiro/1992 até Abril/1992); Coleção Definitiva Marvel Homem-Aranha (Salvat) #3 – “A Saga Original do Clone” (Maio/2017)
Roteiro: Gerry Conway, Archie Goodwin
Arte: Ross Andru, Gil Kane
Arte-final: Frank Giacoia, David Hunt, John Romita Sr., Michael Esposito
Cores: David Hunt, Janice Cohen, George Roussos, Petra Goldberg
Letras: Annette Kawecki (EUA) Donizeti Amorim & Rui Alves  (Brasil)
Capa: John Romita Sr., Gil Kane
Editoria: Roy Thomas, Len Wein, Marv Wolfman
Páginas: 192

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