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Crítica | Ilíada, de Homero

por Leonardo Campos
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Se você é uma pessoa cuidadosa e que em algum momento da sua vida se responsabilizou pela limpeza da sua casa, há a possibilidade de ter utilizado Ajax, produto de limpeza eficaz na arte de alvejar a cerâmica do banheiro. Se você teve computador entre os anos 1990 e os primeiros momentos dos anos 2000, tendo acessado bastante a internet e realizado downloads, existe uma probabilidade bem grande de ter atraído o infame Cavalo de Troia, vírus que promoveu a dor de cabeça de muitos técnicos de informática, hoje algo pouco comum na seara virtual, haja vista o surgimento de vírus mais mortais na atualidade.

E aquele momento em que você indignado com alguém, atingiu o “calcanhar de Aquiles” de tal pessoa, promovendo à velha e literária revanche que todos amamos? Pois fique atento. Estas expressões são oriundas do universo cultural grego, presentes na Ilíada, poema épico milenar que narra as aventuras de deuses, heróis e mortais durante os dez anos da guerra de Troia, numa produção literária de grandes proporções, antecipadora da Odisseia, narrativa de retorno do astuto Odisseu para Ítaca, após os acontecimentos em terreno troiano.

A Ilíada trata da ira de Aquiles e da sua trajetória enquanto herói épico, tendo como pano de fundo a controversa guerra de Troia. O tal conflito se deu por causa do rapto de Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, irmão de Agamenon. Há também a disputa entre as deusas Hera, Atena e Afrodite pelo posto de deusa mais bela. Zeus teria colocado Páris, um troiano, para resolver a disputa e ele acaba por escolher Afrodite, a deusa do amor (leia-se sexo).

Atena ofereceu poder na batalha, Hera o poder em geral e Afrodite o amor da mulher mais bela do mundo. Ao escolher Afrodite, causou a discórdia para si e para Troia. A tal mulher bela era Helena. Com muitos pretendentes, ela torna-se esposa de Menelau e, durante uma missão diplomática de Páris a Esparta, o jovem a sequestra, causando a fúria do então esposo e promovendo o que ficou conhecida como uma das maiores guerras da história ocidental.

As naus guerreiras guiadas por Agamenon partiram para Troia e a partir daí deu-se início ao conflito bélico que durou cerca de uma década e causou a morte de muitos guerreiros gregos e troianos. O fim é estabelecido com o famoso Cavalo de Troia, projeto de Odisseu, responsável por invadir Troia, destituir o rei Príamo e finalizar a guerra, com saldo positivo para os gregos.

Todos os cantos são importantes para o estabelecimento contínuo das aventuras propostas pelo poema, mas há de se destacar o canto I, que nos apresenta os conflitos bélicos em Troia e as suas motivações; o canto II, em que Odisseu, com a sua astúcia ainda em processo de maturação, abafa uma revolta que poderia ter colocado a supremacia dos gregos em risco durante a batalha; o canto VII, tenso pelo duelo entre Ajax e Heitor; o canto XIX traz a reconciliação entre Agamenon e Aquiles; e o canto XXII, “catártico” ao trazer o duelo entre Aquiles e Heitor e uma morte que será responsável por selar o destino da guerra que se arrastou por dez longos anos.

Conforme aponta o professor André Malta, especialista em estudos homéricos na USP, a obra é importante pois trata de questões comuns aos seres humanos, tais como a exortação ao trabalho, a agricultura, a navegação, a hospitalidade, os calendários e orientações sobre o clima e o tempo. Em entrevista ao programa Literatura Universal, o especialista diz que outro detalhe importante é a moral da época, um período em que não havia nem bem nem mal, tampouco recriminações ou elogios, em suma, uma cultura diferente da nossa, mesmo com todas as ressonâncias que a torna bastante próxima de alguns ideais contemporâneos.  Os heróis da epopeia homérica são guiados pelos princípios de honra, virtude e glória.

Os elementos estruturais do poema bélico Ilíada são muito bem elaborados, o que demonstra um apuro estético, algo que mesmo depois de transmitido do suporte oral para o impresso, carregou o seu impacto épico e narrativo, com uma grandiosa história considerada por muitos especialistas como universal, ou seja, algo que está presente em todas as culturas, manifestada de acordo com as demandas de cada povo. Amizade e honra são apenas alguns dos itens que fazem parte do que se convencionou a chamar de “alma humana”, presentes no poema e responsáveis pela longevidade alcançada.

Através de digressões que nos remetem aos sofisticados recursos narrativos do cinema, a obra é constituída de 15.693 versos no formato hexâmetro dactílico, com mistura de dialetos que demonstram a artificialidade da língua falada pelos personagens. Os 24 cantos se relacionam com cada letra do alfabeto grego, com um narrador onisciente objetivo e discreto, dotado da capacidade de trazer múltiplos olhares para a história, não sendo o único a contar o que está acontecendo, pois ao dar a fala aos personagens, permite que estes nos coloquem à parte do que está acontecendo.

De acordo com o filósofo Junito de Souza Brandão em Mitologia Grega, “a Ilíada descreve um fato histórico revestido de um engalanado e maravilhoso estilo poético”. Um filósofo que trouxe verdades. Basta ler o poema com a delicadeza e compromisso para perceber a grandiosidade da sonoridade e da profundidade psicológica, elementos que merecem destaque no épico, com Zeus assumindo o papel de manda chuva nos acontecimentos que se desenrolam, juntamente com a mescla de figuras mitológicas e humanas em uma guerra de grandes proporções que parece não ter fim.

Neste painel de atitudes heroicas, devemos observar as características de dois personagens em especial: Heitor e Aquiles. Enquanto Heitor luta pelas suas raízes e proteção da sua família, Aquiles permanece firme e forte na guerra por conta da soberba. A deusa grega que ocupa o lugar de mãe em sua trajetória lhe visita após o convite realizado por Odisseu para acompanha-lo na guerra. Inicialmente não aceita, mas pondera: lutar e morrer jovem e ser lembrado para sempre ou uma vida anônima e segura, mas esquecível com o passar de gerações?

Dono de uma fúria descontrolada (arquetípica), a sua raiva é humanizada em alguns momentos da narrativa, o que torna o personagem suportável e interessante mesmo diante de tanta arrogância. A sua origem mitológica, por sinal, é uma das mais criativas e interessantes da mitologia grega. “Reza o mito” que a expressão calcanhar de Aquiles vem do momento pós-nascimento do herói. A sua mãe o teria banhado no rio Estige, águas que correm no Hades, tendo o interesse de protegê-lo e torna-lo blindado de qualquer ataque físico.

No entanto, ao segura-lo pelo calcanhar, esta região foi a única que não recebeu o “banho do poder”. O resultado: durante os derradeiros momentos da guerra, Aquiles é ferido por uma flecha no calcanhar e morre. A expressão alcançou a contemporaneidade e indica a fragilidade/fraqueza de alguém, daí a origem do famoso “acertou o cara bem no calcanhar de Aquiles”.

Na seara dos demais personagens é importante também destacar: Ajax, o mais forte e habilidoso dos guerreiros gregos, um homem praticamente imbatível; Nestor, um idoso valorizado pela sua coragem e postura de mentor; Menelau, rei de Esparta, marido de Helena e irmão mais novo de Agamenon; Odisseu, o astuto rei de Ítaca, foco da obra seguinte (Odisseia); Heitor, príncipe de Troia, irmão de Páris, considerado o melhor guerreiro troiano, morto por Aquiles em um duelo; Páris, responsável pela guerra e pela flecha que mata Aquiles, acertando-o em seu calcanhar; Eneias, primo de Heitor e principal tenente; e os deuses Hera, Atena, Poseidon, Hefesto e Tétis, do lado grego, juntamente com Apolo, Afrodite, Ares, Leto e Ártemis, apoiadores dos troianos.

Em suma, como aponta Salvatore D’onofre em Literatura Ocidental, a Ilíada é a epopeia da guerra, em que se exalta junto com a afirmação dos valores individuais dos heróis em personagens profundamente humanos, os esforços coletivos do povo grego no que tange às suas conquistas territoriais.

Entre as ressonâncias da Ilíada no bojo da cultura ocidental, podemos criar uma lista de proporções homéricas, abrangente na poesia lírica, no teatro, na tragédia, na filosofia, na historiografia, bem como nas artes da era da reprodutibilidade técnica (cinema, televisão e demais suportes audiovisuais).

Por fim, mas não menos importante, muitos questionam a qualidade da obra por conta da polêmica acerca da identidade de Homero, poeta cego que teria surgido por volta do século XII a.C.na Jônia, região da atual Turquia. É preciso lembrar aos leitores que isso não importa. O mesmo há com aqueles que questionam se Shakespeare teria ou não existido. O que importa é que a obra está mais presente do que nunca em nossas vidas.

Segundo Richard Tarnas em Homero: origens e influências, não se trata do nome de um poeta, mas um ente fictício, no entanto, “independente da sua existência, é preciso lembrar que foi uma personificação coletiva de toda a memória grega antiga”.  Segundo relatos históricos, teria nascido na região do mar Egeu e se tornado o responsável por levantar questões muito antes do que conhecemos como pensamento filosófico (Aristóteles, Platão etc.). A sua origem, como dito, é tão controversa que diversas ilhas da região disputam a honra de ter sido a cidade natal do poeta.

Uma entidade, no mínimo, relevante. Leia a crítica sobre a Odisseia e complemente as reflexões levantadas por aqui, afinal, ler os clássicos é uma questão importante para compreensão da construção de muitos temas da sociedade contemporânea. À guisa de curiosidade, sete séculos depois, o romano Virgílio praticamente unificou a Ilíada e a Odisseia, o que deu origem a Eneida, epopeia do herói Eneias, personagem que se faz presente durante os conflitos gregos, tema, entretanto, para uma crítica posterior.

Ilíada — Grécia, séc VII a.C.
Autor: Homero
Editora: Editora LP&M
Páginas: 500

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