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Crítica | Império do Sol

por Gabriel Carvalho
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“Eu aprendi uma nova palavra hoje: bomba atômica. Era como uma luz branca no céu, parecida com Deus tirando uma fotografia.”

A Segunda Guerra Mundial é a temática mais adorada pelo diretor americano Steven Spielberg, sendo pano de fundo para algumas de suas maiores obras, como A Lista de Schindler e O Resgate do Soldado Ryan. Em outro contexto, vindo de filmes mais pipoca, mas saindo do sério A Cor Púrpura, a investida do cineasta em Império do Sol, anos antes destes seus maiores sucessos sobre a guerra nascerem, envolveu a adaptação da obra parcialmente auto-biográfica de J. G. Ballard. Um garoto britânico, nascido de família rica, acaba tendo que sobreviver sozinho no meio de uma guerra, sendo separado de seus pais após os japoneses invadirem a China. Das ruas de Xangai aos campos de concentração japoneses, Império do Sol trata-se, de certa forma, de um coming-of-age; o crescimento de Jamie Graham, baseado nas extraordinárias experiências vividas por Ballard. “A perda da inocência“, como o próprio Spielberg se refere ao seu filme. Dessa forma, o diretor potencializa em sua obra a necessidade de transformação, de um arco de personagem. Seu objeto de foco durante as gravações deveria ser o protagonista; uma versão mirim de Christian Bale, que precisava trazer os sentimentos intrínsecos a este cenário de desilusão e solidão. Distanciado de seus pais, Jim acaba conhecendo inúmeras figuras peculiares, vivenciando várias atrocidades, tornando-se algumas vezes parte de todo o mecanismo de guerra, enquanto em outras, uma mera criança distante mentalmente de todo este cenário hostil. Curiosamente, é Império do Sol que termina um pouco distante, mas dos espectadores.

Dessa forma, salienta-se, como exemplo das tantas mudanças, a ótica do menino em relação ao clarão branco – a explosão da bomba atômica – visto por Jim de uma maneira “infantil”, inicialmente comparada por ele a uma mensagem do além, em um primeiro plano mais pueril. A desconstrução é evidente quando as notícias sobre a guerra, umas das poucas intervenções do filme sobre a realidade exterior, se apresenta. Não apenas aqui, Christian Bale prova-se capaz, ainda criança, de sustentar as diversas facetas da perda que reside na caracterização de seu personagem. Em relação ao roteiro de Tom Stoppard, contudo, temos um trabalho desfocado, que não solidifica as distintas vertentes abertas sobre Jamie. O olhar do garoto para os japoneses como heróis – uma visão que não sustenta a polarização de lados, mas a abertura de diferentes verdades sobre um mesmo “fato” – incorpora-se também na busca por ideais de quem Jim quer ser, do que ele almeja. No encontro com Basie (John Malkovich), Jim se mantém na sombra do americano, criando-se na narrativa outra porta para a exploração da ingenuidade de uma criança frente às figuras, muitas vezes problemáticas e questionáveis, que surgem do caos. No meio de tudo isso, aviões aparecem, nos estonteando paralelamente a uma câmera que os acompanha, priorizando mais o formato das aeronaves que as pessoas que as pilotam. Apenas uma única vez Steven Spielberg quebra essa constante, e o resultado é magistral. O voo tem distintos significados, até mesmo no fracasso destes.

Mas quando estamos tratando de Basie, o amor de Jim por aviões não está em evidência. É outra idealização que está em pauta, muito menos atraente, impulsionada por uma aproximação com os aspectos rejeitáveis deste “herói”; uma personificação óbvia do estudo sobre ingenuidade que estava sendo feito de maneira muito mais poética com o contraste de bem e mal existente – ou não-existente – em uma guerra. No caso dos japoneses tratados como coletivo, não como indivíduos, valentes e habilidosos, o distanciamento é frutífero, gerando idealizações mais voláteis ao passo que os americanos vão aparecendo em cena, tornando-se, paulatinamente, os novos heróis de Jamie. Já na exploração da relação do menino com Basie, Steven Spielberg acaba puxando sentimentalismos inexistentes, tendo em vista que o olhar paternal de Jim sobre o personagem de Malkovich não é convincente. Em uma multidão de acontecimentos, que vão sendo amontoados em um filme longo, a trupe de Basie pega o espaço necessário para que a “perda” dos pais ganhasse novas significações. A solidão acaba sendo preenchida por novos rostos, mas o vazio do peito apenas parece ser esquecido, enquanto que, em um diálogo com o Dr. Rawlins (Nigel Ravers), este revela-se como ainda existente; um sofrimento contínuo. Por outro lado, a experiência de recolocar apenas o garoto nas mesmas ambientações que antes estava, ou com a família ou com prisioneiros como ele, é interessantíssima.

Ademais, a belíssima trilha sonora de John Williams encontra, em um dos exemplos possíveis para se justificar a impecabilidade do aspecto sonoro do filme, uma combinação perfeita da composição original com a canção Suo Gân, em uma cena que expõe os lados de Spielberg. Nesta exemplificação, pontua-se a recorrência de um uso extensivo de uma reiteração de itens anteriores, no intuito de criar conexão do público com a obra em si. Suo Gân, afinal, é cantada logo no início da obra. Com tais abordagens cíclicas, o diretor acerta e erra, ao passo que, em certas ocasiões, evidencia-se mais uma tentativa de manipulação ordinária pelo cineasta do que a projeção de um sentimento verdadeiro, como quando Basie pede, pela segunda vez, Jamie tomar conta das suas coisas. Caso o personagem de John Malkovich fosse outro, não uma digressão do cerne da obra, teríamos uma diferente perspectiva desse truque narrativo. Nota-se, no entanto, uma desonesta intervenção da trilha na cena em que Jamie pensa estar enxergando sua mãe. A mesma música que Mary Graham (Emily Richard), mãe de Jamie, tocava, logo no início do filme, repete-se, mas a melodia definitivamente não está sendo representada diegeticamente, o que expõe a manipulação sentimentalista do diretor, criando uma desilusão mais mentirosa do que frustante. Outrossim, a conclusão parece ser uma resolução abrupta, enquanto o reencontro de Jim com um determinado “personagem” de seu passado é mais sutil.

Em um último plano, Império do Sol é uma obra extremamente verdadeira quando lida com esse lado de Jamie: o carinho do garoto pelo voar. A jornada não destrói o seu olhar, mas o transforma. Para isso, apurando o visual, a fotografia de Allen Daviau aborda as cores certeiras para que a mística do cenário seja singular. Um piloto japonês, ainda em fase de treinamento, corre com uma aeronave de brinquedo da mesma maneira que Jim uma vez correu com a sua; uma comparação efetiva entre dois lados de uma guerra. A mão de Daviau se faz presente e nos faz imergir no sentimento do menino pelo mágico – além das terras, mas nos céus. Um adendo a esse personagem em específico, que poderia ser algo a mais, mas termina sendo algo a menos, desperdiçado por uma reaparição abrupta. Por fim, a direção de arte e a edição também são pontuações de uma equipe extremamente habilidosa, coesa em intenção. O quarto preenchido por diversos aviões em miniatura, o brinquedo que dá origem a um avião de verdade, a guerra em forma de brincadeira contrastando soldados a espera da verdadeira, o deslumbramento do garoto com as aeronaves que cortam os céus: não são poucos aspectos de Império do Sol que denotam um esmero cinematográfico impressionante. Ao absorver a pirotecnia com entusiasmo, mesclando o sentimento com a “ação” vista por outros olhos, mais infantis, Spielberg encontra a identidade exata para Império do Sol, embora este seja, enfim, um trabalho de certos equívocos que impedem o filme de ser uma de suas grandes realizações.

Império do Sol (Empire of the Sun) – EUA, 1987
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Tom Stoppard
Elenco: Christian Bale, John Malkovich, Miranda Richardson, Nigel Havers, Joe Pantoliano, Leslie Phillips, Masatō Ibu, Emily Richard, Rupert Frazer, Peter Gale, Takatarô Kataoka, Ben Stiller, Robert Stephens
Duração: 154 min.

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