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Crítica | Incêndios, no Teatro Poeira (Rio de Janeiro)

por Ritter Fan
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estrelas 5

Confesso que, de todas as manifestações artísticas, a teatral é a que menos tenho intimidade. Apesar de ser um ávido leitor de peças, raramente assisto as respectivas montagens. Falta de hábito e de tempo são, provavelmente, os maiores vilões nessa história, e, por isso, sinto-me na obrigação de abrir minha crítica com esse comentário.

Minha atração por Incêndios surgiu em 2010, quando assisti à brilhante versão cinematográfica da peça escrita pelo autor líbano-canadense Wajdi Mouawad, dirigida por Denis Villeneuve. Li a peça em seguida e minha impressão se manteve, ainda que o texto consiga ser ainda melhor do que o filme, em razão da inserção mais natural do personagem Hermile Lebel, o tabelião que ajuda os irmãos Jeanne e Simon Marwan a investigar seu passado. Fiquei com enorme vontade de, um dia, ver uma montagem teatral da peça para ver como ele funcionaria nessa mídia.

Eis que surgiu, em 2013, Marieta Severo capitaneando uma das mais concorridas peças no Rio de Janeiro, em seu próprio pequeno teatro (Teatro Poeira, em Botafogo, com apenas 120 lugares). Ingressos esgotados para todas as sessões foi o resultado. Seguiu-se um breve hiato e  a peça foi montada novamente em 2014, estando em cartaz no momento em que escrevo a presente crítica. Quase não consegui ingressos pela segunda vez! Quase.

E então, com muito interesse, fui ao teatro ver Incêndios.

E, mesmo já conhecendo a história em detalhes, novamente me surpreendi e me emocionei.

Sem cortinas e com um palco diminuto, cercado por funcionais e claustrofóbicas paredes translúcidas metalizadas na cor de ferrugem, vemos apenas uma bicicleta no chão. Entra, então, sem qualquer tipo de aviso, Jeanne Marwan (Keli Freitas) e começa a falar com alguém que não vemos no segundo andar do teatro. Logo percebemos que estamos “no presente” e, quando, o tabelião e meta-narrador Hermile Lebel (Márcio Vito) entra na história, um flashback nos leva de volta à leitura do testamento de Marwal Narwan (Marieta Severo), na presença também de seu outro filho Simon (Felipe de Carolis). No testamento, descobrimos que Marwal legou aos filhos duas cartas, uma para Jeanne entregar ao seu pai e outra para Simon entregar ao irmão deles. Acontece que os gêmeos não sabiam que seu pai estava vivo e muito menos que tinham um irmão. Além disso, Marwal dá instruções de como quer ser enterrada (nua, virada para baixo e com uma lápide sem nome) e uma terceira carta existe, endereçada aos gêmeos, mas que só pode ser aberta quando as respectivas missões tiverem sido cumpridas.

Essa fascinante premissa nos catapulta para um passado ainda mais remoto, com Marwan ainda jovem, no Líbano (o país nunca é dito, porém), tendo que lidar com um amor proibido em meio ao começo da guerra civil por lá, que devastou a região. Contar mais é estragar essa narrativa singular de auto-descoberta, mas basta dizer que, com recursos parcos, mas uma inteligência ímpar, a direção de Aderbal Freire-Filho (namorado de Marieta Severo) cria transições entre passado e presente que são raras mesmo em obras cinematográficas, que têm muito mais recursos, claro, do que o teatro. Os flashbacks sem mudança de cenário e com os próprios atores às vezes mudando pequenos detalhes do figurino em pleno palco (esse é o caso do brilhante momento em que a dura mãe de Marwal se transforma na terna avó de Marwan, ambas vividas por Fabianna de Mello e Souza), trazendo props e usando os mesmos (e pouquíssimos) elementos do cenário de várias maneiras diferentes.

A estrutura fixa de atos também é inexistente em Incêndios. A montagem transcorre sem pausas ou intervalos por exatas duas horas sem que, porém, sintamos falta deles. Aliás, talvez justamente pela peça transcorrer intocada ao longo de toda sua duração, o espectador tenha uma experiência ainda mais envolvente e profunda. Sem intervalos, não nos distraímos e sem pausas, nós desesperadamente nos agarramos à história e atuações, em silêncio, quase sem se mover nas cadeiras (aliás, um pequeno parênteses: bem desconfortáveis, diria). Assim, a tragédia das vidas de Marwan, seus filhos e, sim, do pai e do irmão desaparecidos tem um impacto gigantesco na plateia, que se sente cada vez mais achatada e presa por um cenário e uma situação kafkiana, sem ter para onde correr. Absorvemos cada expressão de pavor, cada diálogo travado, cada mínima mudança de figurino com atenção redobrada, literalmente temendo o que vem a seguir.

Com esse espaço minimalista, íntimo mesmo e ultrapassada a questão da eficiente direção de Freire-Filho, resta, então falar das atuações, pois, nesse tipo de peça, com apenas oito atores (com quatro deles fazendo mais de um papel), a atuação é literalmente tudo. Nenhuma peça pode estar fora de lugar. E o destaque, claro, fica com Marieta Severo no papel de Marwan, a mãe atormentada que, mesmo morta, coloca os filhos em uma inesperada missão. Atuando como o fantasma de Marwan e também como Marwan em diversas idades, desde a adolescência, a primeira reação é de estranheza. Estranheza muito mais pessoal do que para os demais da plateia. É que, tendo visto o filme, que se beneficia da maquiagem para envelhecer a Marwan “do presente”, demorei um pouco para mergulhar na imutabilidade dos traços de Marieta Severo quando, de fantasma, ela “se transforma” na sua versão adolescente. Mas vejam: isso não detrai nem um pouco do resultado final. Foram necessários alguns momentos para que me acostumasse, pois Severo faz um excelente trabalho de transformação, com gestos, tom de voz e cabelos soltos. E, na medida em que seu personagem vai crescendo (em anos e, sobretudo, em experiência) testemunhamos outras modificações condizentes com seu estado naquele momento.

Mas já esperava essa atuação de Marieta Severo e não fiquei surpreso. Quem me surpreendeu mesmo foi Keli Freitas, no papel de Jeanne Marwan, a primeira personagem a subir no palco. A filha, professora de matemática pura, é o personagem que, à exceção de Marwan, ganha o maior foco da montagem. É ela que vagarosa, mas continuamente cresce e se desenvolve em sua busca pelo passado. E Keli Freitas não só tem um arco de desenvolvimento próprio, com muita personalidade, como ela consegue, de certa forma, carregar um pouco do jeito de Marieta Severo, criando uma perfeitamente crível ligação entre mãe e filha.

Márcio Vito, no papel do tabelião, faz as vezes de narrador, impulsionador da narrativa e, também, na medida do possível (considerando-se o peso da história trágica), de alívio cômico. Mas é uma comicidade parcimoniosa, delicada, daquelas que temos vergonha de rir, não por que não tenha graça, mas por que a graça é soterrada pela forma com que Vito faz suas leves “piadas”, ele mesmo sem muita certeza se são engraçadas e, também, pelo fato de estarem sendo contadas ao longo de uma narrativa que não faz muitas concessões.

Se existe uma atuação que destoa das demais, essa é a de Felipe de Carolis. Mas isso não significa, necessariamente, que é uma atuação ruim ou que ela afete o resultado final da montagem. A grande questão é que seu personagem, Simon, é o menos trabalhado no roteiro e, com isso, o ator tem menos oportunidades de mostrar seu talento. Mas é exatamente o pouco destaque que é dado a Simon que acaba também tornando sua atuação menos compatível com as demais razoavelmente irrelevante para o desenrolar da narrativa, mesmo que a última frase da montagem seja dita por ele e é ela que ressoará na cabeça dos espectadores por muito tempo depois de seu fim.

A cativante e bem construída história de Incêndios ganha uma montagem mais do que digna e extremamente inteligente. Ninguém sairá do teatro da mesma maneira que entrou.

Incêndios (Incendies, Canadá – 2003)
Montagem no Brasil: 2013 – 2014
Autor: Wajdi Mouawad
Tradução: Angela Leite Lopes
Direção: Aderbal Freire-Filho
Elenco: Marieta Severo, Felipe de Carolis, Keli Freitas, Marcio Vito, Kelzy Ecard, Fabianna de Mello e Souza, Julio Machado, Isaac Bernat
Teatro: Poeira (Botafogo, Rio de Janeiro)

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