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Crítica | Interiores (1978)

por Luiz Santiago
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Depois do enorme sucesso de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977), Woody Allen recebeu sinal verde da United Artists e forte apoio dos produtores executivos Charles H. Joffe e Jack Rollins para fazer os filmes que bem entendesse. O diretor o diretor vinha flertando já a algum tempo com a ideia de realizar um drama, gênero com o qual brincou, clandestinamente, em A Última Noite de Bóris Grushenko (1975), e que agora tornava-se uma possibilidade em sua carreira, a segunda grande mudança de sua então curta filmografia.

É claro que Interiores causou grande estranheza no público americano, acostumado com o Woody Allen de Bananas e Dorminhoco, comédias que, apesar de inteligentes, tinham os dois pés na tradição do humor físico e inocente, com tramas fáceis de se entender e nenhuma grande mensagem em particular. Em Interiores, ele deixou de lado a inocência, as caras e bocas, e investiu em uma história profundamente existencial, de uma design de interiores que sempre teve tudo sob controle mas que vê sua vida mudar completamente quando o marido pede a separação e ela se dá conta de que não sabe lidar com nada fora do lugar em que imaginou que deveria estar… para sempre.

Parte da resistência ao filme veio justamente pela forma como o roteiro aborda a personagem da excelente Geraldine Page (Eve), segundo alguns, retratada como uma espécie de ‘sanguessuga’ que impedia a felicidade dos outros se não estava de acordo com os princípios de organização e harmonia que tanto valorizava. A questão é: se de fato a película tem esse olhar para Eve, que mal há nisso? Não é uma forma interessante de ver problemas psicológicos e as mais diversas angústias humanas trabalhadas em uma personagem desse porte, interpretada por uma atriz como Geraldine Page e com o complexo contexto familiar mostrado no enredo do filme? A questão se complica um pouco mais quando os mesmos olhares fixam-se no elenco majoritariamente feminino e a forma como as outras mulheres também são retratadas, ou como aproveitadoras ou como vítimas de si mesmas, quase apelando por um socorro alheio que sempre chega tarde demais, fazendo girar o ciclo de desgraças que marca todos os relacionamentos da obra.

Mas antes de condenar essa ou aquela forma de Woody Allen escrever as personagens femininas nesta fita (e novamente: não vejo mal algum no tratamento dado às personagens aqui, porque todas elas são muitíssimo bem contextualizadas e desenvolvidas dentro de sua importância dramatúrgica para nesse texto), é preciso olhar para a proposta da obra, o duplo sentido do título — o interior dos lares ou das pessoas — e a intensidade dos diálogos amargos, conversas que não escondem a grande influência de Gritos e Sussurros e ao mesmo tempo mostra a criação de Allen ao explorar preocupações menos filosóficas e mais neuróticas, egoístas e mesmo sentimentais se comparadas à obra de Ingmar Bergman. Essa semelhança de tratamento, juntamente com suas diferenças temáticas e modelos de abordagem dão a Interiores uma forte identidade pessoal a um certo modelo de drama aqui estruturado pelo cineasta, além de uma figuração humana de personagens, como pessoas perdidas e solitárias mesmo quando lhes são colocadas muitas opções de caminho pela frente ou quando muitas pessoas estão dispostas a lhes acompanhar.

O grande fotógrafo Gordon Willis, que começou a trabalhar com Allen em Noivo Neurótico, cria aqui um ambiente quase em constante penumbra, como um eterno crepúsculo que nos diz muito sobre o estado de espírito dos personagens, fator ainda mais forte na cor e no modelo de figurinos, sempre austeros e em tons térreos, melancólicos, uma derivação dos grandes espaços limpos e semi-vazios (a maior parte deles, pelo menos) dos interiores vistos ao longo da fita. A única exceção a esta regra é a personagem maravilhosamente interpretada por Maureen Stapleton (Pearl), que nos é apresentada em um vestido vermelho e autoestima à toda prova, contrastando com todos os intelectuais azedos vistos até então. O roteiro ainda coloca um interessante debate sobre o significado de uma peça a que todos assistiram e sobre a qual Pearl não consegue ver “nada demais”.

O que faz alguém refletir constantemente sobre si mesmo e sobre sua vida a ponto de deixar de viver, talvez com medo de encontrar os dissabores que essas reflexões sugerem? O que faz alguém depender tanto de outro alguém a ponto de anular-se por completo, esperando uma salvação externa para uma vida que, no final das contas, nunca foi vivida sem a presença ou concordância alheia? O que une uma família formada por pessoas de personalidades, problemas e desejos tão diferentes? Interiores nos coloca essas perguntas o tempo inteiro, intensificando a urgência pelos símbolos utilizados em sua composição: o mar como última salvação e cenário de liberdade inalcançável; a escrupulosa direção de arte que reflete a personalidade de cada um; os figurinos lúgubres e a fotografia sombria; a ausência quase total de trilha sonora, os excessos ou falta de emoções. Woody Allen deu aqui o seu primeiro passo em uma seara que não lhe era familiar e acabou realizando um de seus melhores filmes, uma obra introspectiva, reflexiva, doída. Uma visita social ao interior da personalidade humana.

Interiores (Interiors) – EUA, 1978
Direção:
Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Elenco: Kristin Griffith, Diane Keaton, Geraldine Page, Mary Beth Hurt, Richard Jordan, E.G. Marshall, Maureen Stapleton, Sam Waterston
Duração: 93 min.

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