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Crítica | Interlúdio

por Ritter Fan
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Interlúdio é o segundo filme de Alfred Hitchcock em que Cary Grant e Ingrid Bergman participaram (o primeiro de Grant foi Suspeita e o de Bergman foi o imediatamente anterior Quando Fala o Coração), mas essa foi a primeira vez que os dois dividiram a tela, formando uma das mais belas duplas que já sagrou a Sétima Arte. Ambos viriam a atuar em filmes de Hitchcock novamente (Cary Grant mais duas vezes e Ingrid Bergman mais uma vez) e ambos viriam a dividir a tela novamente em Indiscreta (1958), de Stanley Donen, mas é em Interlúdio que os dois produzem uma química tão perfeita que é difícil até de prestar atenção na trama do filme.

E a razão para tamanha perfeição em um casal na tela grande é devido tanto a Hitchcock quanto aos dois. O diretor teve que lutar para manter Cary Grant no filme, pois David O. Selznick queria Joseph Cotton, ator com contrato com sua produtora e que, claro, seria mais barato. Selznick fez de tudo para ganhar essa batalha, mas a insistência de Hitchcock acabou prevalecendo. Com isso, Grant teve a chance de, mais uma vez, fazer um papel sério, saindo de suas então costumeiras comédias.

Ingrid Bergman, diz a lenda, ficou absolutamente encantada por Grant e também por Hitchcock, sendo uma das pouquíssimas atrizes que o diretor passou a ouvir, para surpresa geral de todos os envolvidos na produção. Dessa forma, uma espécie de química natural entre Bergman e Grant passou a existir desde o primeiro dia de filmagens, com a bênção de Hitchcock, que parecia muito à vontade com os dois atores, especialmente – e compreensivelmente – com a estonteante beleza de Bergman.

Além disso, em uma das cenas mais conhecidas de Interlúdio, Hitchcock usou de toda sua criatividade para literalmente burlar o ridículo Código de Produção que existia à época e que só permitia “beijos na boca” de, no máximo, três segundos. Em uma altamente erótica cena com Grant e Bergman, o cineasta dirigiu os dois de maneira que, a cada três segundos de beijo, um brevíssimo intervalo existisse entre eles, o que estendeu o “beija beija” por impressionantes dois minutos e meio (essa cena acontece no apartamento de Bergman, no Rio de Janeiro, quando o personagem de Grant faz uma ligação para seu chefe, para quem estiver interessado). Poucas duplas conseguiriam o efeito que conseguem em Interlúdio e Grant e Bergman fazem tudo tão naturalmente que é impossível não se deixar envolver.

A história lembra um pouco a de Sabotador, com um casal enfrentando espiões nazistas. A diferença crucial em termos narrativos é o deslocamento da trama para a América do Sul, mais precisamente para o já mencionado Rio de Janeiro, onde 95% da história se passa. Ingrid Bergman vive Alicia Huberman, filha de um americano condenado a 20 anos de cadeia por ser espião nazista. Ela é recrutada por T.R. Devlin (Cary Grant) para espionar os amigos de seu pai que moram no Rio, especialmente Alex Sebastian (Claude Rains), que vive com sua mãe nazista-mor Mme. Sebastian (Leopoldine Konstantin) em uma mansão.

Com o deslocamento da ação para outro país, o tom patriota que é levantado nos primeiros cinco minutos da fita completamente desaparece da narrativa, dando lugar a uma história que é primordialmente de amor, mas com elementos de thriller. Devlin e Alicia se apaixonam e começam a ter um caso já no Rio, enquanto os planos de infiltração na família Sebastian não seguem em frente. Alicia tem um passado promíscuo e é vista por todos dessa forma desrespeitosa e Devlin, apesar de enamorado por ela, tenta, a todo custo, manter-se durão e distante, o que lembra, de certa forma, seu papel em Suspeita. Alex, por sua vez, acaba se tornando o terceiro vértice do que acaba sendo um interessante e perigoso triângulo amoroso.

Por detrás da trama de amor e paixão, Hitchcock insere um de seus mais famosos MacGuffins: o urânio que seria o objetivo da presença nazista no Rio de Janeiro. Como todo MacGuffin, esse artifício narrativo está lá só para impulsionar a história, sendo um fim em sim mesmo. Ele funciona para basicamente reunir o elenco em torno de um único objetivo e, nesse sentido, funciona muito naturalmente. E o interessante é que, na vida real, pouca gente sabia, àquela época, do papel do urânio em bombas nucleares, já que isso ainda era tido como um segredo militar (estamos falando de 1946, não é mesmo?). Assim, os envolvidos na produção acabaram sendo, de uma forma ou de outra, investigados pelo FBI, isso pelo menos segundo o próprio Hitchcock.

Mas, voltando à história, Interlúdio tem uma das mais impressionantes fotografias da filmografia de Hitchcock. Ted Tetzlaff foi o responsável por um trabalho que reuniu características de filme noir, suspense e histórias de amor de uma maneira muito eficiente, sem distrair o espectador ou causar mudanças radicais na forma de fotografar a ação. Além disso, ele foi o responsável por diversas tomadas inesquecíveis, como a mudança de ponto-de-vista da câmera logo no começo da projeção, com Alicia de ressaca na cama e Devlin conversando com ela. Vemos tudo girar acompanhando o movimento da cabeça do personagem em um inteligente uso dos recursos visuais. Outro momento inesquecível é o plano-sequência que começa em plano aberto no segundo andar da mansão dos Sebastian e acaba em close-up na mão de Alicia segurando a chave para a adega de Alex. Um primor de técnica à serviço da história.

E Hitchcock fez em Interlúdio exatamente o que queria em termos da fotografia principal. Bergman e Grant jamais vieram para o Rio de Janeiro filmar. Todo o trabalho com atores foi executado em ambiente controlado, em estúdio, da maneira como Hitchcock gostava, com apenas uma sequência – a dos cavalos no Jockey Club – filmada em locação (mas na Califórnia mesmo). As diversas sequências de fundo foram efetivamente filmadas no Rio de Janeiro pela equipe comandada pelo diretor de segunda unidade William Dorfman, que fez um excelente trabalho ao capturar a cidade nos anos 40 para usar em sobreposição aos atores. Funciona muito bem, desde que o espectador do século XXI seja capaz de entender que a tecnologia do que hoje seria o chroma-key, há quase 70 anos, ainda era muito rudimentar. Mesmo assim, a fusão entre imagens em primeiro e segundo plano é uma das melhores que já vi em filmes dessa época.

E Hitchcok ainda evita fazer uso de estereótipos “cariocas”. Nada de samba e mulheres bonitas. Bergman e Grant são o foco e o diretor não distrai seus espectadores com besteiras. O Rio de Janeiro é tratado como uma cidade exótica, mas sem que esse exotismo seja jogado na nossa cara. É uma das poucas vezes em que isso acontece em filmes estrangeiros.

Com um elenco afinado, uma história simples, mas que prende a atenção, uma direção fascinante e uma fotografia de cair o queixo, Alfred Hitchcock entrega, com Interlúdio, uma das melhores obras de sua carreira, um verdadeiro marco que viria pautar seu trabalho a partir dali. E o melhor é que Selznick, com a briga gerada com a manutenção ou não de Grant no elenco, acabou deixando Hitchcock livre para suas próprias produções, literalmente inaugurando uma nova era para o diretor.

  • Crítica originalmente publicada em 15 de agosto de 2016. Revisada para republicação em 21/03/2020, em comemoração aos 120 anos de nascimento do Mestre do Suspense e da elaboração da versão definitiva do Especial do diretor aqui no Plano Crítico.

Interlúdio (Notorious, EUA – 1946)
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Ben Hecht, Clifford Odets (diálogos das cenas de amor), Alfred Hitchcock (não creditado)
Elenco: Cary Grant, Ingrid Bergman, Claude Rains, Louis Calhern, Leopoldine Konstantin, Reinhold Schünzel, Moroni Olsen, Ivan Triesault, Alexis Minotis
Duração: 101 min.

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