Home QuadrinhosMinissérie Crítica | Inumanos (1998 -1999)

Crítica | Inumanos (1998 -1999)

por Gabriel Carvalho
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“Imagine que você não pudesse emitir som algum pelo resto de seus dias. Nem palavras, nem suspiros, nem bocejos. Jamais. Imagine, então, que lhe oferecessem a chance de falar. O que você diria? O que diria ao povo de Attilan, a maravilhosa metrópole situada no limiar do conhecimento humano, caso fosse seu Rei?

Contém spoilers.

O fornecimento de títulos da Marvel Comics para a Event Comics, empresa de Joe Quesada, originou o surgimento de histórias mais maduras com temáticas e abordagens menos compromissadas com os termos gerais dos quadrinhos dos anos 90. A presença de quadrinistas seletos em altas produções, muitas delas experimentais deram margem à criação de diversas obras publicadas pela própria Marvel sob o selo Marvel Knights. Uma das histórias a encabeçar essa linha editorial, juntamente com as de personagens como Demolidor, Justiceiro e Pantera Negra, foi Inumanos, uma minissérie de Paul Jenkins e Jae Lee. Os estranhos personagens de Stan Lee e Jack Kirby ganhavam uma nova roupagem, mais moderna, sofisticada e relevante.

A sociedade sedimentada de Attilan, lar dos Inumanos, é um retrato fictício do mundo dos homens, sendo inspirada no sistema de castas, mas também representativa de todas as possíveis formas de estratificações sociais, muitas encobertas por conceituações idealizadoras, e em sua maioria, hipócritas. A meritocracia, uma delas. Nesta civilização, os jovens, ao chegarem em determinada etapa de suas vidas, devem passar por um ritual de transformação, que os revelarão como criaturas únicas, peças de uma sociedade baseada no preceitos de que a diversidade gera igualdade. As contradições mundanas também refletem-se nas contradições inumanas, que, em suas tentativas seculares de busca pela harmonia; a evolução como chave para a organização social; escondem o preconceito, a divisão de classes, a escravidão imposta e cinicamente suavizada pela simbologia subvertida de liberdade.

Os acontecimentos primordiais da minissérie, pelo menos em um primeiro momento, abordam o próximo grupo jovem a passar pelo ritual da Névoa Terrígena. A mais destacada pela visão de Jenkins e Lee é Tonaja, uma adolescente como qualquer outra, remetente às típicas imagens juvenis. As efêmeras paixões e os inofensivos ciúmes da adolescência são alguns dos contornos do roteiro, que delineia o grupo como todo. No aguardado momento de transformação, o contato da Névoa Terrígena com a pele de Tonaja faz emergir de sua casca comum uma surpreendente figura alada; uma identificação que logo a faz ser comparada ao Rei, também capaz de alçar voo. O que se observa como crítica por parte do roteiro com a sociedade inumana é o que acontece com a presumida melhor amiga de Tonaja, Kalykia. Como ela ganha uma transmutação “inútil” – supostamente apenas uma deformação grotesca de seus dedos – a garota é segregada, sendo relegada a camadas mais inferiores que as dos outros amigos dela; esnobada pelas pessoas que possivelmente lhe juraram amizade.

Todavia, o que mais intriga os membros do mais alto escalão dos Inumanos é o que acaba por acontecer com um dos garotos do grupo: Dewoz. O colapso a ser emergido do surgimento natural de um Alfa Primativo traz as mais diversas inseguranças à Família Real, especialmente sobre a funcionalidade da cadeia evolutiva de sua espécie. Maximus, o Louco, prisioneiro e irmão de Raio Negro, revela-se enfim como articulador de um grande planeamento de destituição da organização de Attilan como se encontra no momento. Nos meios externos, a comoção militar de milicianos portugueses, que inadvertidamente começam a bombardear o escudo protetor da cidade, sob ordens do Coronel Stalyenko. Nos meios internos, a manipulação da personalidade fragilizada, a beira da auto destruição, de Dewoz, relegado ao trabalho manual de Alfa Primitivo, mesmo não tendo sido originado como ser artificial – leia artificial utilizando a significância convencional do termo – e destinado a exercer tal função.

A condução dos planos do Louco é excepcional, indiciando uma narrativa cada vez mais instigante, com os caminhos mais interessantes sendo explorados. O cavalo de Troia da armação, Abraham Lincoln em seu equino entregando a chave da cidade a um general de brigada, funciona como uma excelente metáfora sobreposta ao próprio campo de força de Attilan. As Organizações das Nações Unidas têm papel fundamental na orquestração do golpe, sendo que questões sobre o mundo exterior dos homens, repleto de antíteses morais, são pontuadas eficientemente por um enredo desprovido de simbologia barata. É um estudo intenso repleto de denúncia social pelos seus meandros. O combate enfim se inicia, humanos contra inumanos, em um cenário que revela a máscara da teórica união dos inumanos como civilização – não menos incoerentes em seus discursos – oposta à desarmonia dos homens, desunidos como indivíduos mesmo unidos como espécie.

Um grande ponto de conflito é o assassinato do inumano Naanis durante o embate entre as forças de Attilan e os mercenários portugueses. Esse ato motiva a revolta de Timberius, irmão de Nannis, que começa a clamar – e a movimentar o povo com seus discursos inflados – por justiça. A justiça de Timberius; o assassinato de todos os homens; no entanto não vai de encontro com a jurisdição inumana, usada como contra-argumento por Medusa, nessa manobra de “uma vida por outra”. O bom rei permanece inerte nesse momento, possivelmente passando por dezenas de contradições em sua própria cabeça, suficientes para fortalecer a forte oposição do seu povo – e até de alguns de seus maiores aliados, como Gorgon – em sua decisão de não retaliação. A razão como alicerce de seu discurso pacífico, que é intensamente reafirmado por Karnak como uma decisão sábia, é fragmentada com a fuga do Louco, que desestabiliza todo o povo.

A trágica história do naufrágio do RMS Lusitania, navio de passageiros britânico que fora abatido por um submarino alemão durante a Primeira Guerra Mundial, é revivida pelos olhos de Triton, em uma bonita abordagem da humanidade, suas virtudes, seus pecados e suas incoerências. Paul Jenkins diminui o ritmo da história para fazer-nos acompanhar a aventura solo do inumano marítimo, dando margem a um belíssimo conto e um monólogo poderosíssimo, rico de conteúdo argumentativo, que traz uma questão conflitante: qual a humanidade real? A arte de Jae Lee é ainda mais primorosa, com a pintura de seus quadros subaquáticos, muitos compostos por destroços e ruínas, ilustrando o passado de Triton – e o futuro do jovem Billy que ressurge com um horizonte de memórias de pano de fundo.  Em termos narrativos, a contribuição de Ocêanico reside na aparição e consequentemente recusa de Namor em participar da guerra. A atitude, contudo, acaba sendo revista posteriormente.

De todas as oportunidades já existentes de se trabalhar Raio Negro como personagem, esta é definitivamente a que melhor o faz. A oitava edição da minissérie conta com uma divertida participação de Dentinho, tendo seus pensamentos abordados em primeira pessoa, sendo que ao final de sua aventura diária – com direito até a figuração de um boneco do Coisa, do Quarteto Fantástico – o cão vai de encontro a um rei possivelmente atormentado. Um rei que busca “silenciar” a sua população, como mesmo se silencia, literalmente e figurativamente, sem revelar aos que lhe honram suas intenções. Uma atitude polêmica que provoca a ira tanto do povo, quanto da própria Família Real Inumana. Uma atitude, porém, que reis mais corajosos, isentos de caprichos comuns, se permitem tomar, sendo afligidos pelo martírio (a pressão daqueles ao seu redor e a permanência de Medusa “em cativeiro”) em prol do que acredita ser melhor para todos.

Mais à frente, o plot twist de toda a história encontra-se no fato das complicações que os leitores observaram surgindo por mais de edições, serem na realidade maquiagens de Raio Negro, notado em uma comparação com a personalidade política Winston Churchill, e Karnak, este último infelizmente subutilizado na trama. Maximus estava mesmo colocando suas arquitetações maquiavélicas para funcionar, mas porque seu irmão queria que ele as colocasse. Um plano extremamente meticuloso, que se fragiliza a presença de Maximus como vilão, potencializa Raio Negro como rei e como um personagem muito bem escrito. Aliás, a ironia de se observar o mestre das ilusões sendo iludido pelo seu próprio irmão é um deleite bônus. O monólogo final, que retoma os pensamentos iniciais do Rei Inumano, evidencia as consequências negativas que vieram e que poderiam ainda vir. O sacrifício de Medusa, que tem seus cabelos cortados pelo Louco, é pincelado como uma possível causa complicadora da relação da Rainha com o Rei. De tal modo, a minissérie ainda deixa pontas abertas para serem exploradas no futuro.

A minissérie dos Inumanos sob o selo Marvel Knights é a história definitiva desses personagens incríveis. Utilizando de uma premissa política instigante, construindo um “protagonista” forte e evidenciando antíteses sociais existentes tanto nesse mundo fictício quanto no nosso, Jenkins é extremamente oportuno na recriação desse universo. A reimaginação do quadrinista é incrível, dando o tom perfeito para uma abordagem moderna dessa espécie superpoderosa. Ademais, coloca-se o protagonismo de Raio Negro entre aspas, como feito anteriormente, porque na realidade o protagonismo da obra não pertence a ninguém senão o próprio povo inumano. Se fôssemos analisar a construção individual dos personagens de Jenkins, o mesmo teria falhado na exploração de coadjuvantes como Cristalys, por exemplo. Mas não. A obra fala sobre um grupo complexo com uma organização social repleta de ambiguidades, permitindo-a assim criticar, com um quê otimista em seus momentos finais, um reflexo exuberante da nossa própria sociedade.

Inumanos: Volume 2 (Inhumans: Vol. 2) — EUA, 1998/9
Roteiro: Paul Jenkins
Arte: Jae Lee
Arte-final: Jae Lee
Letras: Richard Starkings (#1), David Lanphear (#1-2), Wes Abbott (#3, #5), Liz Agraphiotis (#4), Saida Temofonte (#6-10, #12), John Gaushell (#11)
Cores: Avalon Studios (#1, #5), Dave Kemp (#2-4, #6-12)
Capas: Jae Lee 
Data de publicação: novembro de 1998 a outubro de 1999
Páginas: 22 páginas em cada uma das 12 edições

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