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Crítica | Jackie Brown

por Ritter Fan
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Antes de Quentin Tarantino dirigir À Prova de Morte, em 2007, Jackie Brown era comumente encarado como seu filme mais fraco, isso quando lembrávamos da existência dele. Até mesmo eu, que gosto muito do estilo Tarantino de dirigir, devo confessar que Jackie Brown não passava de uma vaga lembrança de uma obra menor dele.

No entanto, o que uma nova chance não é capaz de fazer!

Revendo os filmes de Tarantino cronologicamente, ficou muito claro que, enquanto Cães de AluguelPulp Fiction e, ainda, os filmes que escreveu nesse meio tempo, mas não dirigiu (a história de Assassinos por Natureza, um segmento de Grand Hotel e todo Um Drink no Inferno), representam uma espécie de adolescência brilhante do cineasta, Jackie Brown, baseado no livro Rum Punch, de Elmore Leonard, é seu primeiro passo em direção à idade adulta, que chega talvez até prematuramente. É uma pequena joia esquecida por uma expectativa de mais diálogos pop e situações de extrema violência, como nos dois filmes anteriores.

E não é que Cães de Aluguel e Pulp Fiction sejam piores que Jackie Brown, mas apenas que é sensível a tentativa de Tarantino sair de sua zona de conforto e ampliar seus horizontes. Óbvio que suas marcas registradas estão todas lá, intactas, como diálogos inteligentes, personagens curiosos, trilha sonora arrebatadora, mistura de gêneros, narrativa não-linear, ângulos de câmera, homenagens e, não podemos esquecer, seu indefectível fetiche podólogo. Acontece que Jackie Brown é um distanciamento do “mais do mesmo” que vimos antes, quase um experimento e, talvez a partir dessa percepção ainda no subconsciente, é que muitos rejeitem essa obra.

No entanto, logo na bela abertura não há como não ficar ao menos curioso pelo trabalho do diretor. Vemos umo longo plano-sequência ao som de Across 110th Street, de Bobby Womack (uma aviso importante: essa música é daquelas que ficam em sua cabeça por semanas!), em que observamos Jackie (Pam Grier), com seu uniforme de aeromoça, em uma esteira de aeroporto em direção ao portão de embarque de seu voo. Nada acontece e a vemos de perfil apenas, sem que ela mude a expressão. Aos poucos, Jackie começa a se apressar, pois vê que está atrasada, até que ela está correndo – mas sempre preocupada com seu cabelo – até o portão de embarque. A cena é plasticamente perfeita, com os ladrilhos da parede do aeroporto contrastando com o forte azul do figurino da personagem. E a aceleração da sequência sem cortes funciona exatamente como um prelúdio da destruição da pacata vida de Jackie, com os acontecimentos que se desenrolam, ainda que não saibamos disso nesse começo.

Mas então, de repente, Tarantino larga sua protagonista. Ela foi para Cabo São Lucas no México, afinal de contas. Assim, aquela bela presença feminina que nos hipnotiza na abertura torna-se apenas uma lembrança pelos próximos 30 ou 40 minutos, quando o diretor volta suas lentes para o traficante de armas Ordell Robbie (Samuel L. Jackson), que tem como amante a drogadona Melanie (Bridget Fonda) e que acabou de receber sob sua asa um amigo de prisão que ele quer contratar como seu capanga, Louis Gara (Robert De Niro). Descobrimos que um cúmplice de Ordell foi preso (Beaumont Livingston, vivido por Chris Tucker) e ele precisa pagar a fiança. Com isso, entra na história o metódico bail bondsman Max Cherry (Robert Forster).

Quando esse rico universo nós é apresentado e parece que estamos andando em terreno mais sólido, a atenção se volta mais uma vez para Jackie, desta vez retornando de seu voo para o México e sendo acrescida à narrativa macro. Não demora e descobrimos que ela também é cúmplice de Ordell, já que ela traz dinheiro de Cabo São Lucas para ele. Os detetives Mark (Michael Bowen) e Ray (Michael Keaton) estão ao encalço de Ordell e acabam prendendo Jackie no processo, para torná-la uma informante. O que vemos, a partir daí, é o longo, lento e elaborado plano de Jackie, já com 44 anos e sem perspectivas de futuro, pois trabalha em uma das piores empresas aéreas americanas, para tirar proveito de sua impossível situação.

A escalação do elenco já é algo que, por si só, torna o filme obrigatório a qualquer cinéfilo, bastando ver a lista de nomes incríveis que citei acima. Querendo emular o clima do subgênero do blaxploitation, comum nos anos 70, Tarantino trouxe Pam Grier mais uma vez para os holofotes. Para quem não sabe, Grier foi uma atriz de renome no começo da mencionada década, ao iniciar sua carreira de verdade com The Big Doll House (produção de Roger Corman), em que fazia uma das prisioneiras com pouca roupa que tinham que tentar fugir de uma prisão nas Filipinas. Seu envelhecimento trouxe sabedoria e uma calma transcendental, aparentemente, sem que ela perdesse a beleza estonteante, já que, em Jackie Brown, ela deixa transparecer o entendimento da vida que a idade traz, ao mesmo tempo que exibe vigor físico para, convincentemente, nos transmitir a segurança de uma heroína de ação. Vemos tristeza, alegria e amargura sem arrependimento, além de orgulho, em uma atuação notável. Quem não fica muito atrás, por incrível que pareça, é Bridget Fonda. Apesar de seu papel que apenas em princípio parece ser secundário, Fonda faz o contrário: é a jovem que deixou sua vida estragar cedo, com drogas e sexo. Por isso, ela apresenta uma maturidade inconsequente e uma expressão que nos faz sentir pena dela.

Robert Forster, veterano do cinema e da televisão, tem a atuação de sua vida, contracenando perfeitamente com Grier (eles compartilham da compreensão do mundo causada pelo envelhecimento) e com Jackson emprestando até um tom mais cômico ao filme. De Niro, por sua vez, é mais uma curiosidade do que qualquer outra coisa. Sempre reconhecido como excelente ator, ele é literalmente um “mero coadjuvante” cujo papel é fumar maconha e obedecer as instruções de Ordell, sempre com a cara amarrada denotando má vontade e pouca paciência. E ele funciona maravilhosamente bem. Já Samuel L. Jackson vive uma versão turbinada de seu personagem em Pulp Fiction. Ele é mais violento e mais falastrão que Jules, além de ser seu próprio chefe, não devendo satisfação a ninguém. Apesar de ser o antagonista, seu papel é mais caricato e, arrisco dizer, o menos interessante da fita.

Todo o elenco funciona apesar dos diálogos e isso é algo bom, já que o que Tarantino escreve muitas vezes é mais icônico do que quem fala. Em Jackie Brown, o que vemos é Tarantino se segurando para não alongar seus diálogos, nem crivá-los de uma saraivada de frases de efeito pop. Ainda há muita coisa para o cinéfilo ver e ouvir, mas tudo depende muito mais dos atores e do que está em volta do que questões como o que Madonna quis dizer na letra de Like a Virgin ou como se chama o Quarteirão com Queijo em Paris. Adaptando obra de terceiros, Tarantino viu-se limitado ao conteúdo presente no livro e, com isso, voltou sua atenção ao silêncio, ao contraste de imagens. Não seria por outra razão que a abertura é longa e contemplativa ou, quando Max vê Jackie saindo da prisão, todo seu trajeto é mostrado.

Mas toda essa contemplação de nada serviria se a direção de arte e figurino fossem fracos. Esses dois departamentos tiveram muito trabalho para dar um legítimo ar setentista ao filme. O cuidado com os detalhes anacrônicos é de um rigor que impressiona. Afinal de contas, o filme se passa no ano em que foi feito (ou algo por aí), não na década de 70. Mas os carros, as roupas e toda a ambientação tenta, com sucesso, homenagear a era do blaxploitation sem que aparatos modernos presentes quebrem a quarta parede.

E, se Tarantino atingiu rapidamente a idade adulta com esse filme, talvez tenha sido porque sua parceria com a saudosa Sally Menke na montagem atingiu o ponto alto. O trabalho de montagem em Jackie Brown chama a atenção exatamente por não chamar atenção para si próprio, como nos dois primeiros filmes da dupla. Sim, a narrativa é não linear, mas a alteração temporal na obra é mais suave, como quando, mais ao final, vemos o que aconteceu na climática cena da loja de roupas por meio de três pontos de vista diferentes, em uma excelente modernização de Rashomon. Outro exemplo brilhante do trabalho de Menke é a montagem paralela do diálogo ameaçador de Ordell com Jackie e a direção tranquila de Max de volta para casa, dois momentos aparentemente sem conexão trazidos à vida e utilizados para o máximo efeito dramático por meio do split screen.

A vaga lembrança que tinha de Jackie Brown tornou-se uma vívida lembrança das surpresas que Tarantino nos guarda a cada nova sequência de cada novo filme. E seria uma pena se não déssemos a essa película a chance que damos a tantas outras do diretor.

  • Crítica originalmente publicada em 31 de dezembro de 2015, reformulada para republicação hoje, 06/08/19.

Jackie Brown (Idem, EUA – 1997)
Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino (com base em romance de Elmore Leonard)
Elenco: Pam Grier, Samuel L. Jackson, Robert Forster, Bridget Fonda, Michael Keaton, Robert De Niro, Michael Bowen, Chris Tucker, LisaGay Hamilton, Tommy “Tiny” Lister Jr., Hattie Winston, Sid Haig, Aimee Graham
Duração: 154 min.

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