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Crítica | Jogos Mortais

por Leonardo Campos
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Quanto sangue você daria para continuar vivo? Essa é uma das perguntas mais famosas de Jogos Mortais, produção que mescla elementos dos filmes policiais, do terror e do torture porn, além da estética dos games e do videoclipe, sendo o responsável por abrir as portas para uma imensa trilha de filmes que tiveram a tortura como um dos elementos narrativos centrais. O Albergue, Turistas e o agonizante Um Filme Sérvio: Terror sem Limites são alguns dos exemplares dessa linhagem.

Em Jogos Mortais, dois homens estão enclausurados em um banheiro misterioso, sujo e quase inóspito. A luta contra o tempo é o que vai engendrar os acontecimentos entre o Dr. Larry Gordon (Cary Elwes) e o fotógrafo Adam (Leigh Whamel, que também assina o roteiro), pois estes acordam e percebem que estão presos pelos pés através de pesadas correntes. Ao passo que os personagens descortinam os motivos que os levaram para aquele local, ambos descobrem terem sido raptados por Jigsaw (Tobin Bell), um homem de 62 anos vitimado pelo câncer e decidido a impor às pessoas uma nova forma de ver a vida, através de armadilhas sangrentas, tendo em mira a reabilitação social destes indivíduos “desviados” socialmente.

Paralelamente, somos apresentados a Amanda (Shawnee Smith, a mocinha da refilmagem de A Bolha Assassina, de 1988), uma das sobreviventes das armadilhas de Jigsaw, uma dependente de drogas que encontrou no “sábio” homem um novo caminho para a sua degenerada vida. Ela consegue sair ilesa ao modelo contemporâneo da Máscara da Infâmia, uma das mais famosas modalidades de tortura da Idade Média, o que não foi o caso do seu companheiro de cela, vitimado por um jogo ao estilo “salve-se quem puder”. Além dessa personagem (por sinal, muito importante para a continuidade da saga), há a busca incessante da polícia pelo esconderijo de Jigsaw, através de outro arco narrativo que também envolve as ameaças sofridas pela esposa e pela filha do Dr. Gordon, vítimas de uma chantagem que envolve a superação das fases vivida pelo médico nos jogos desenvolvidos junto à Adam.

O enredo, assinado por James Wan e Leigh Whamel, surgiu com base numa parceria que envolveu a rememoração de pesadelos da infância e o diálogo constante entre os roteiristas, que se comunicavam em ligações durante a noite num enérgico fluxo de ideias e possibilidades. As comparações com Seven: Os Sete Crimes Capitais são praticamente inevitáveis, pois o roteiro é assumidamente inspirado em um e outro elemento do policial bem dirigido por David Fincher em 1995, mas diferente dos crimes capitais investigados por um “irado” Brad Pitt, Jogos Mortais segue o ponto de vista das duas vítimas enclausuradas. Há também uma relação com o enigmático Cubo, de Vincenzo Natali, lançado em 1998, trama mirabolante e muito bem orquestrada sobre pessoas num cativeiro e a necessidade de jogar para manter-se fora das estatísticas e se tornarem sobreviventes.

No que tange aos aspectos técnicos, Jogos Mortais consegue alcançar bons resultados: a montagem de Kevin Greutert não entrega o “doce” logo de cara e tem como aliada o trabalho de som assinado por Charlie Clouser, tema que se tornaria a “cara” da saga, assim como as trilhas de Tubarão e Psicose (1960) se tornaram emblemáticas para os seus respectivos filmes, o que não significa que a trilha e a música tema sejam tão formidáveis e inesquecíveis como os clássicos de Spielberg e Hitchcock, mas possuem determinado significado no bojo da história recente dos filmes de terror.

É importante ressaltar que Jogos Mortais possui o que se convencionou chamar de “Estética Playstation”: há superação de fases, mobilidade efusiva dos ângulos e enquadramentos da câmera, uso estilizado de determinadas cores, mixagem de som agressiva e representação gráfica da violência, que por sinal, nos remete ao perverso como experiência estética.

Associado ao que teoricamente chamamos de sublime, esses choques que se perpetuam em segurança e através da estética são comuns aos filmes de terror. O sublime é definido como tudo aquilo que é produzido em qualquer instância e interessado em excitar as nossas ideias de dor e de perigo. Tudo aquilo que é terrível, trata de objetos terríveis ou opera na seara da analogia ao terror é uma fonte do sublime. Por ser fruto da emoção, o terror é considerado o princípio governante do sublime.

Sendo assim, o medo e o pavor se desenvolvem nas cenas, mas o espectador sabe que está em segurança, pois o que se apresenta diante de si não passa de pura representação. Em um mundo adornado por uma agressividade enjaulada, questão muito bem desenvolvida no ótimo Uma Noite de Crime, filmes como Jogos Mortais parecem ter a função social de administrar o nosso gozo diante dos níveis de perversidade inerentes a cada ser humano, questão tangenciada por Freud em O mal-estar da civilização.

De volta ao âmbito estrutural, entre os destaques da trilha sonora, temos a canção You make me feel so dead, de Pitbull Daycare. No refrão, a letra expõe que “você me faz sentir tão morto, como posso querer continuar vivendo?”, numa clara referência aos temas debatidos no filme. Apesar de apresentar jogos que são mortais, a discussão é mais sobre a valorização da vida. Mesmo que soe absurdo e hipócrita, Jogos Mortais possui uma “pegada” moral cristã sobre um deus que castiga as pessoas que não dão o devido valor ao que possuem. Um tanto insano, mas é o que faz a trama desenrolar.

As “aulas” ministradas por Jigsaw visam despertar nas pessoas a capacidade de sentirem a intensidade da vida propiciada com base na experiência de proximidade da morte. Para o realizador dos jogos, as pessoas são ingratas com as suas vidas, e por isso, como uma espécie de Buda às avessas, ele não salva esses indivíduos, mas traça o caminho da salvação através de armadilhas mortais, causadoras de muita dor e sofrimento.

Sofrimento + dor = suplício, uma das palavras que definem o eixo temático não apenas desse primeiro filme, mas de toda a saga. Definido como uma pena atroz, o suplício é parte do esquema da liturgia punitiva em Jogos Mortais, um ritual que possui em seu cerne a necessidade de cumprimento solene da sentença. Essa constatação nos remete ao que Michel Foucault desenvolve em Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Os motivos? Os cenários em galpões e fábricas aparentemente abandonados nos remetem à sociedade disciplinar, pois para o filósofo, edifícios como a prisão, a fábrica e a escola são locais organizados para manter os esquemas que envolvem as relações de poder na sociedade. Estes espaços tornam os sujeitos mais dóceis e adestrados, assim como as vítimas das armadilhas do filme, indivíduos que possuem as suas penas apresentadas nos moldes do espetáculo, semelhantes aos esquemas das punições públicas que marcaram a história da tortura no período medieval e na posteridade.

Lançado nos Estados Unidos em 29 de outubro de 2004, Jogos Mortais foi um sucesso estrondoso de bilheteria e chegou ao Brasil poucos meses depois, no dia 04 de fevereiro de 2005, com a continuação já engatilhada. Como muitos filmes de terror contemporâneos, a produção também investe em traços metalinguísticos: há referências a Trainspotting em uma determinada cena envolvendo um vaso sanitário imundo, bem como aos filmes de Dario Argento e as luvas negras dos seus inventivos assassinos e a famosa “fantasia”, desta vez, protagonizada por um ventríloquo, numa abordagem que nos remete aos mascarados Jason (Sexta-Feira 13), Michael Myers (Halloween – A Noite do Terror) e Ghostface (Pânico). É importante iluminar, portanto, que tecnicamente Jigsaw não é um serial killer, tendo em vista o seguinte fato: ele nunca matou ninguém, pois sempre deixou as pessoas se matarem.

Numa época decadente para os filmes de terror, Jogos Mortais chegou como um frescor para o gênero, promessa logo desfeita ao longo das seis continuações, quase todas desnecessárias e apelativas. Isso, portanto, é assunto para a nossa próxima incursão na saga, através de Jogos Mortais 2, crítica a ser veiculada em breve. Por enquanto, reflita quanto sangue você daria para continuar vivo. Esse é um importante questionamento para os que desejam sobreviver aos jogos subversivos, assim como para os espectadores que precisam decidir se conferem a saga até o final ou a abandonam em face da perda da qualidade gritante dos filmes subsequentes.

Jogos Mortais (Saw, Estados Unidos – 2004)
Direção: James Wan
Roteiro: James Wan e Leigh Whannel.
Elenco: Cary Elwes, Danny Glover, Leigh Whannel, Monica Potter, Shawnee Smith, Tobin Bell.
Duração: 105 minutos

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