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Crítica | Não Lamento Minha Juventude

por Luiz Santiago
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Em 1946, Akira Kurosawa via-se livre para tomar quaisquer rumos na direção de suas obras. A censura que enfrentou no início da carreira já não existia — embora alguns censores ainda exercessem, nas sombras, um ofício que fora oficialmente extinto havia um ano –, e um novo tempo para a cinematografia japonesa se apresentava. Alguns filmes que surgiram nesse primeiro momento de plena liberdade de expressão denunciavam ou criticavam eventos que marcaram fortemente a história do país, especialmente após a ocupação japonesa na Manchúria, em 1931. Não Lamento Minha Juventude (já chamado aqui no Brasil de Juventude Sem Arrependimento, 1946) é um grande representante dessa safra de filmes e um evento raro na carreira de Kurosawa, porque conta com uma atriz no papel principal.

A história acompanha os acontecimentos sombrios que pairaram sobre a Universidade de Kyoto, no início de 1933. Como reflexo da invasão à Manchúria, o Japão foi tomado por uma onda crescente de censura à expressão pública e livre, fato que impulsionou grupos de ideologia à esquerda a engrossarem as manifestações que então se articulavam em torno da Universidade. Alguns professores se demitiram, a imprensa enlouquecia com tantos eventos de ordem política e as estruturas do Estado visivelmente fascista japonês, se incomodava.

Mas acontece que em pouco tempo os ventos revolucionários foram contidos e o país passou a caminhar sob uma opressão velada, atravessando as crises externas do final dos anos 1930, também na Manchúria, e a entrada do Japão na Segunda Guerra Mundial, em 1943.

Kurosawa e Hisaita e Matsuzaki (não creditado) assinam um roteiro que atravessa um longo período de tempo, fator que talvez possa ter contribuído para que o filme se tornasse mal trabalhado em alguns pontos. O que os roteiristas conseguiram alcançar em relação à politização dos personagens, a crítica ao militarismo e à censura, faltou ser trabalhado nas motivações que os impulsionaram a essa militância, especialmente do meio da obra para frente. Também alguns eventos amorosos em torno do triângulo Yukie-Noge-Itokawa parecem perdidos em meio ao drama familiar e à questão da guerra. Apesar de a ótima atriz Setsuko Hara apresentar uma personagem emotiva, em uma notável atuação, sua postura no começo do filme não convence e afasta um pouco o espectador. É claro que essa mudança extrema da personagem feminina está ligada às suas motivações psicológicas, e ela é a única do filme que apresenta essa faceta bem construída, mas nem por isso deve ser isenta de sua construção inicialmente insatisfatória.

Há quem diga que Juventude Sem Arrependimento é o pior filme de Kurosawa. Os moderados apontam-no como um filme menor. Talvez o segundo grupo tenha razão, se levarmos em consideração os outros filmes do diretor, mas que ninguém se engane, este drama de amor e guerra é uma obra tocante, que tem em sua segunda metade uma das representações mais lancinantes da renúncia de uma mulher à sua vida cômoda para viver numa vila onde é apontada por todos como a esposa de um “traidor da pátria”, ou seja, aquele que prestava serviços de informação aos Aliados durante a guerra. É impossível não se emocionar com os rumos que tomou o amor inocente do início dos anos 30 e que fizeram de Yukie uma vítima da política de seu país, mesmo que nos bastidores; em uma esfera relativamente menor do que a de seu esposo morto por ter sido acusado de traição.

O espectador encontra aqui elementos vivos do neorrealismo italiano e da montagem (assinada pelo próprio Kurosawa) que remete ao espetáculo revolucionário do cinema soviético. A sobreposição de jornais, as marchas nas ruas, o arrozal destruído, todos os elementos de luta e suas metáforas são abstraídas pelo espectador com uma força emotiva muito forte, embora sempre fique um ranço de estranheza, como se estivesse faltando algo para completar o todo ou como se o filme tivesse apresentado coisas demais antes de mostrar sua verdadeira motivação. Seja como for, essa obra política de Kurosawa deve constar na lista de qualquer espectador que  tenha interesse pelos eventos políticos aqui trabalhados ou mesmo pelo cinema japonês do pós-guerra. É quase certo que esses grupos não saiam plenamente realizados da sessão, mas muito raramente sairão insatisfeitos.

Juventude Sem Arrependimento (Waga seishun ni kuinashi) – Japão, 1946
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Eijirô Hisaita
Elenco: Setsuko Hara, Susumu Fujita, Denjirô Ôkôchi, Haruko Sugimura, Eiko Miyoshi, Kokuten Kôdô, Akitake Kôno, Takashi Shimura, Taizô Fukami, Masao Shimizu, Eijirô Hisaita
Duração: 110 min.

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