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Crítica | Kamen Rider Build

por Giba Hoffmann
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A “ética dos brinquedos” que norteia as produções atuais das séries tokusatsu da Toei é algo especialmente fascinante. Que a produção e venda de brinquedos tenha centralidade na criação do entretenimento infantil — e de toda a verdadeira mitologia que o gênero é capaz de fazer erguer, perdurando viva na memória dos marmanjos por tanto tempo quanto o plástico dos bonecos demoraria a se decompor na natureza — não deve ser grande novidade para os amantes das mais diversas vertentes da cultura pop.

Ainda assim, é um fato que os super-heróis norte-americanos tenderam a abraçar doses variadas de realismo e sisudez em suas adaptações cinematográficas, televisivas e mesmo nos quadrinhos, relegando o aspecto da brincadeira e do brinquedo preferencialmente ao nível tangencial para não chatear os humores do adulto que se pega envolvido por tais tramas.”Uma propaganda no meio do gibi mensal (o que é isso, mesmo?) ou nos comerciais de um seriado da Marvel ou DC, vá lá, mas não me venha comparar os dramas adultos de meu Batman ou X-Men com Power Rangers, essa bobageira escapista feita para vender brinquedos!”

Enquanto isso, no Japão, a divisão estrita de públicos favoreceu tradicionais séries televisivas de super-heróis como Kamen Rider Super Sentai a se tornarem verdadeiras superproduções de marketing, tecnicamente as mais rebuscadas peças de publicidade de brinquedos já feitas. O compromisso de tais produções em apresentar dramas em live-action onde os personagens brandam descaradamente os próprios brinquedos como props, e cujas narrativas se constroem provavelmente em torno dos mesmos (e não o contrário) é de botar He-Man e Transformers no chinelo. E, felizmente, nem por isso as séries perderam sua identidade.

Kamen Rider Build, décima nona temporada da série no período Heisei, é um delicioso encontro entre elementos absolutamente díspares. Não apenas a fusão de um coelho e de um tanque de guerra, mas do super-heroísmo angustiado e pessimista do Kamen Rider de Shotaro Ishinomori com a estética exagerada, colorida e nonsense que marcou as produções de Rider na década atual. O tema da síntese de opostos aparentemente incompatíveis já começa a trabalhar desde aí, em um nível metalinguístico. O que o exercício mostra, no entanto, é que na forma sincera e despretensiosa de se fazer televisão com que a produção opera, os resultados dramáticos acabam ironicamente tendo um impacto maior do que em produções do mesmo gênero que tentam se levar a sério demais. Afinal de contas, inserir temas dramáticos em meio à galhofada super-heróica é uma tarefa muito mais fácil do que inserir a galhofada super-heróica em um ambiente pretensamente dramático: os quadrinhos da Era de Prata já provaram isso há muito tempo.

A tentativa de combinar opostos incompatíveis é um tema que perpassa todos os aspectos da série, e uma escolha curiosa para uma produção infanto-juvenil em tempos de polarização. A política inclusive se faz presente internamente no roteiro desde o início: a abertura da Caixa de Pandora trazida de Marte ergue a Muralha Celestial que divide o Japão em três nações: Hokuto, Seito, e Touto, cada qual governado por seu respectivo líder fanático em busca de vencer uma guerra insidiosa e desnecessária. Trata-se de uma premissa inventiva para uma série de Rider, ainda mais a partir de sua combinação com elementos que remontam à série original: a Faust, misteriosa organização dedicada à ciência deturpada que, tal qual a Shocker fizera com Takeshi Hongo, transforma Sento Kiryu (Atsuhiro Inukai) em algo mais que humano.

É interessante como, em termos de enredo, a série condensa o que seriam certamente no mínimo três temporadas de um programa televisivo norte-americano. Há uma grande mudança de foco e estrutura entre os três arcos principais que compõem o seriado, e essa reinvenção constante, ainda que não seja implementada de forma perfeita e traga seus problemas de ritmo, garante que a experiência se mantenha sempre fresca. Investindo pesado na narrativa focada em mistérios que tem marcado algumas das melhores entradas da série no período Heisei, Build não economiza no suspense e na construção de cliffhangers instigantes.

No primeiro arco, o combate de Sento contra os Smash e suas investigações científicas a respeito da Muralha Celestial e da misteriosa Névoa são apenas o pano de fundo para a busca pessoal a respeito de seu próprio passado perdido, com a qual se somam a conspiração envolvendo o suspeito de assassinato foragido Ryuga Banjou (Eiji Akaso), bem como as reais habilidades e motivações de sua figura paterna Soichi Isurugi (Yasuyuki Maekawa), proprietário do Café Nascita e tutor de Sento em sua vida pós-amnésia como Kamen Rider. O trio, somado à filha de Isurugi, Misora (Kaho Takada), compõe um núcleo de personagens principais bastante interessante.

O espectador rapidamente se habitua com o ritmo de trabalho no Café Nascita e com as personalidades diferentes que compõem o time, de forma que esse arco inicial deixa saudades quando as coisas começam a dar lugar ao desenvolvimento da trama central. A série toma um tempo justo para construir a figura de Isurugi antes da revelação a respeito de sua real identidade, e no nível emocional a traição não falha em convencer, em grande parte devido à boa atuação de Inukai e do cinismo irritante de Maekawa. Porém, não deixa de ficar a impressão de que esse primeiro segmento poderia se demorar um pouco mais, especialmente tendo em vista o quanto o terceiro e último ato da temporada se alonga em subtramas auxiliares desnecessárias (leia-se: tudo envolvendo o pai de “Sento”, Shinobu). São especialmente interessantes os episódios em que Sento e Banjou viajam para outras regiões do Japão, ajudando a nos dar uma dimensão da situação gerada pela Muralha Celestial, essencial para emprestar o peso ao conflito que segue.

Ainda que haja pouca variedade nos designs dos Smash, o fato é mais do que compensado pelos visuais e poderes excepcionalmente maneiros do Kamen Rider Build. Ainda que com um quê de exagero, tais desenhos deixam um pouco de lado a hipérbole carnavalesca vista em Kamen Rider Ex-Aid, em favor de um visual mais liso, minimalista e cool, ao melhor estilo dos grandes acertos da série no quesito. A ação é sempre variada e inova constantemente com os novos power-ups, especialmente nessa fase inicial. A arte com que a equipe da Toei produz essas cenas de ação é algo invejável e sem paralelos, e Build certamente encantará os entusiastas pelo nicho.

Por sua vez, o arco das Rider Wars traz provavelmente o ápice da série em termos tanto de drama quanto de ação. Estando nossos Riders primário e secundário já bem estabelecidos, bem como um conjunto interessante de vilões com motivações e planos diversos entrando em um jogo de forças dentro do qual o misterioso Blood Stalk vai ganhando espaço, a entrada no segundo ato faz a série mergulhar com tudo em uma tonalidade mais dramática. Ainda que o orçamento limitado se faça sentir em vários momentos, a direção consegue vender algumas sequências-chave de modo a estabelecer minimamente a escala do conflito. No melhor estilo dos mangás shonen, o combate contra os Kamen Riders de Hokuto e Seito traz um misto entre ação trash e consequências cataclísmicas para o mundo todo.

Kazumi Sawatari / Kamen Rider Grease (Kohei Takeda) é muito bem construído tanto como inimigo central da primeira metade do arco, quanto como Rider terciário com motivações e posicionamentos tridimensionais na trama. Seus subordinados, o infame Trio de Hokuto, lembram os gloriosos “Três Patetas” de Gosei Sentai Dairanger, trazendo um misto de humor e o inevitável toque trágico que, mesmo que vá sendo prenunciado de forma explícita desde a primeira fatalidade, traz vários momentos bastante intensos para a trama. Seu alinhamento moral é interessante na medida em que eles representam o “homem comum” de Hokuto, postos em meio à guerrra sob uma perspectiva totalmente externa a eles, que justifica sua ingenuidade mas ao mesmo tempo torna mais nobres seus sacrifícios.

Por sua vez, Gentoku Himoru / Kamen Rider Rogue (Kensei Mikami) é o personagem-revelação de todo o enredo. Iniciando a série como um burocrata extremamente desgostável, um vilão com ares de capanga mesquinho, seu arco na história é um dos mais interessantes. Ao contrário de Grease, que luta por sua terra com seus compatriotas, Rogue vem diretamente do alto escalão do poder — mas não atribui valor algum a isso e, sem pestanejar, abandona a Faust e trai a Touto de seu pai em favor de se tornar o Kamen Rider de Seito. A batalha climática contra Seito consegue aliar ótimas sequências estapafúrdias de ação com o desfecho dessa subtrama, mostrando o que difere Build e Cross-Z dos outros Riders e preparando o grupo para a batalha final contra o verdadeiro inimigo.

No arco final, todas as tramas convergem muito bem em torno de Evolt. A narrativa como sempre evoca imagens interessantes, uma delas sendo a associação de Blood Stalk / Kamen Rider Evolt com a figura do demônio Mefistófeles. Todos os Riders que se unem no final tem uma vendeta com o ser que se fazia passar por Isurugi, sendo que as subtramas de redenção pessoal de Grease e Rogue trazem alguns dos melhores momentos dramáticos de toda a série (sem deixar de lado aquela boa dose de humor absurdo). Deixando de lado a busca por perdão, eles buscam antes de tudo reverter a situação da qual fizeram parte, e estão dispostos a sacrificar tudo para cancelar o contrato que fizeram com o demoníaco Evolt.

Mas não são apenas os Riders terciários que recebem excelentes desfechos no arco de Evolt. Tanto Sento quanto Banjou conseguem ser bem desenvolvidos e explorados, em especial com um bom uso de sua amizade como ponto de referência. Sento ensina Banjou a ser um Kamen Rider, e o secundário recebe do enredo a oportunidade de retribuir o favor literalmente à altura, por mais de uma vez. Ambos compartilham da mesma condição, que é a de uma lacuna de memória que faz com que suas personalidades estejam focadas no presente (e, claro, deixam suas origens misteriosas prontinhas para serem exploradas em mais e mais episódios cheios de reviravoltas).

A ideia de que Build foi uma criação ficcional da persona real de Sento, o cientista demoníaco Takumi Katsuragi (Yukiaki Kiyama) é bem interessante, e acaba sendo melhor aproveitada justamente na reta final, após o retorno de Katsuragi inicialmente como personalidade dominante, e depois como figura no “espelho” mental de Sento. A forma como a produção toma tempo para mostrar a relação entre as duas personas de Build e mesmo a representação de seu espaço mental impressionam para uma série do gênero, trazendo um ótimo trabalho diretorial que mantém interessantes as cenas de diálogo e desenvolvimento de personagem. O único ponto contra no desfecho arco de Sento vem justamente na reta final, quando todos esses pontos bem construídos a respeito de sua “vida anterior” e real identidade acabam um tanto sabotados pelas revelações envolvendo seu pai Shinobu Katsuragi (George Kokubo).

O uso do lugar-comum da perda de memória foi desculpável na medida em que rendeu uma construção de personagem única e bem cuidadosa. O híbrido Sento-Katsuragi é uma ótima contraparte para a natureza cindida de Build e de seus poderes, além de render boas reviravoltas no enredo. Já o lugar-comum do “pai malvado — ou será que não?” não consegue escapar da própria redundância, e acaba arrastando um pouquinho o arco conclusivo que já trazia elementos o suficiente para um desfecho cataclismático (e cheio de significados pessoais para Sento). Os episódios investidos em Shinobu poderiam ser melhor utilizados mostrando os desdobramentos políticos da guerra em Hokuto e Seito, ou ampliando o status quo original com Isurugi ainda no Nascita. Por sorte, a série consegue tempo para respirar e entregar um final agridoce e ousado, que utiliza-se do já conhecido botão de reset de uma maneira astuta e intrigante.

Combinando coelhos com tanques, drama com ação e o mais puro nonsense com temas sóbrios, Kamen Rider Build consegue ser uma série infantil repleta de elementos interessantes que vão da ficção científica à conspirações políticas e espionagem, sem perder no caminho a sua simplicidade e coesão internas. Mesclando a hipérbole colorida das temporadas pós-Decade de Kamen Rider com uma narrativa sóbria que versa sobre guerra, identidade o papel da ciência e da razão no esclarecimento (ou obscurecimento) das diferenças aparentemente inconciliáveis, o seriado traz ótimos personagens em uma trama com um núcleo temático sólido. Combinação perfeita!

Kamen Rider Build (Japão, 3 de setembro de 2017 – 26 de agosto de 2018)
Direção: Satoshi Morota, Shojiro Nakazawa, Kyohei Yamaguchi, Kazuya Kamihoriuchi, Takayuki Shibasaki, Ryuta Tasaki
Roteiro: Shōgo Mutō
Elenco: Atsuhiro Inukai, Eiji Akaso, Kaho Takada, Katsuya Kobayashi, Bucky Koba, Yukari Taki, Yasuyuki Maekawa, Kensei Mikami, Tatsuo Kanao, Yuki Ochi, Kohei Takeda, Yukiaki Kiyama, George Kokubo
Duração: 30 min. (cada episódio)

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