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Crítica | Karnak – Vol. 1: A Falha em Todas as Coisas

por Anthonio Delbon
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  • Contém pequenos e inofensivos spoilers

As pedras são mais importantes para o universo do que vocês. Até para uma pedra vocês não são nada

Karnak, o falso inumano. Aquele que não passou pelas névoas terrígenas, artista marcial exímio e detector dos pontos de fraqueza em tudo – sistemas, pessoas, pensamentos, objetos. Em suma, um promissor personagem a ser delineado por nada menos que Warren Ellis (Transmetropolitan, Planetary, Cavaleiro da Lua, Homem de Ferro: Extremis), autor que ressaltou o personagem como um “filósofo intenso e demente”. Se somos humanizados pelas nossas falhas e vícios e não pelas nossas virtudes, Karnak emana uma filosofia intensamente humana simplesmente por ser quem é e ter as habilidades dadas por Stan Lee há mais de 50 anos.

As seis edições desta primeira série solo do membro da realeza inumana possuem um simples cenário: Karnak é chamado pelo agente Phil Coulson para ajudar a S.H.I.E.L.D. a encontrar um garoto inumano desaparecido. Acertadamente, Ellis não se preocupa com a premissa em si, focando todo o seu arsenal de ideias no próprio protagonista. É preciso ressaltar de antemão, todavia, que o tema de Karnak só se faz presente como leitura fluida e prazerosa nos dois últimos números, graças à lentidão do roteiro em insistir no estabelecimento de um protagonista impaciente, furioso e niilista ao extremo…e isso cansa, por mais que sua percepção seja interessantíssima do ponto de vista filosófico.

O que deixa a presente obra em um rol incomum nos trabalhos da Marvel é o fato de Ellis não se furtar em elevar Karnak como um combatente essencialmente intelectual. A bem da verdade, e aqui é preciso fazer um parêntese, por mais que as artes marciais estejam no cânone do personagem, as longas páginas dedicadas às acrobacias, desenhadas por Gerardo Zaffino (#1-2) e Roland Boschi (#3-6), são tediosas demais. Ainda que seja compreensível alternar os longos discursos de Karnak – que nem são tão longos assim – com páginas seguidas sem sequer um balão, para dar um fôlego ao leitor após certas complexas inferências, a ação desenhada com foco na precisão de um golpe em detrimento da valorização de uma ampla noção espacial – estou pensando no estupendo trabalho feito no Cavaleiro da Lua do escritor – acaba por exaltar a expressão de poder maioral de Karnak, deixando de criar uma apresentação que o engrandecesse por si mesma, sem forçar a barra.

Mas voltando à parte escrita, o amálgama onde Ellis puxa inúmeros conceitos para descrever Karnak é inesgotável se levado às análises minuciosas. Alguns apontamentos durante os primeiros números preparam o terreno para os dois pequenos shows que tomam conta das duas últimas edições, onde Karnak encara um seguidor do garoto desaparecido, agora símbolo de um messianismo, para depois encontrar-se com o próprio “messias” na tentativa de pinçar sua falha. O poder do inumano é a desculpa perfeita para uma chuva ácida de críticas que vão muito além do fanatismo religioso que pode aparecer em uma primeira folheada superficial.

Alguns parágrafos a mais sobre o tema, ainda que insuficientes: Karnak é chamado logo no início por um assecla, dizendo que o telefone – dispositivo infernal, conforme escrito – estava tocando. É no inferno da falta de significado da vida a priori que Karnak se coloca, como professor da Torre da Sabedoria, obcecado pela tarefa de usar tempo e suor para ensinar às pessoas deste mundo uma verdade definitiva e vital(…) que elas não são nada. Pouco dado às emoções à primeira vista, Karnak é o inumano trágico – aliás, não seria a essência do ‘inumanismo’ esse caráter trágico, posto o próprio absurdo da condição do Raio Negro? – e Ellis traça uma belíssima percepção não só trágica mas também cética que, levadas aos seus limites, caem no abismo do niilismo onde se chega à conclusão de que o ser humano é falho pelo simples fato de ter nascido.

O inferno, que metaforicamente parece ser o solo onde a jornada de Karnak germina, também é simbolizado pelo constante conflito interior do próprio inumano, denunciado, em uma jogada de mestre, na quinta edição. Dissecado pelo seguidor confessional do antagonista messiânico, o leitor é brindado com o outro lado da moeda, sendo capaz de distinguir – ou ficar com uma ferrenha dúvida sobre – os motivos que levaram Karnak a ter uma visão não só trágica como raivosa em relação ao mundo e às pessoas. O ressentimento – sempre ele, a doença epidêmica contra a qual não se possui imunidade, nas palavras do ensaísta inglês Theodore Dalrymple – surge como poderosa força desestabilizadora, principalmente nas mãos de Ellis que não se limita a usar seu herói para denunciar as falhas dos outros – religiosas, sociais, culturais, ontológicas – mas para uma verdadeira autorreflexão que consiste no exercício filosófico por excelência, dolorosamente sentido. Descobre-se, com prazer imenso, a falha do homem que vê as falhas em tudo – uma falha que desperta automaticamente um sentimento de piedade em nós, falhos de igual modo; um sentimento que demora a chegar no próprio Karnak, se é que o próprio inumano permite tal segredo tocá-lo a ponto de transformá-lo.

Ellis não sai ileso das ideias propagadas, todavia. Há passagens realmente cômicas como esta:

– É você Satanás?

– Satanás era só uma estória. Eu sou Karnak…

Dita, evidentemente, por um Karnak no auge do paroxismo em face de um agente da Shield assustado. Isso, ressalto novamente, cansa. Ainda que o demoníaco, como rede filosófica-religiosa, esteja presente neste niilismo latente que Karnak leva até um certo limite, há exageros tipicamente quadrinhescos durante as seis edições. O mais interessante, um pouco fora deste contexto, é sentir a angústia provocada da penúltima edição para a última, onde tudo se resolve com outra tacada de mestre: a falha do messias – a outra parte obscurecida – seria crer no próprio poder de curar as pessoas e, afinal, querer agradar a todos. É fácil reconhecer, convenhamos, caro leitor, uma figura redentora deste tipo nos nossos mais próximos círculos, seja em termos humanitários, comportamentais ou sociais, seja nos termos da utopia contemporânea mais em moda, a política. Como disse a portuguesa Agustina Bessa-Luís, hoje, todo o mundo quer agradar, até o metafísico.

É importante destacar que aqui se encontra o que se poderia esperar da combinação Ellis + Karnak: causticidade e reflexão em meio ao mainstream. O problema de ritmo do roteiro e a teimosia em forçar os traços de Karnak, impossibilitando-os de surgirem naturalmente – tanto na arte como na escrita – são pontos negativos de uma obra que, em geral, pode ser muito bem apreciada pelas ideias que propaga e pensamentos que provoca. Sim, é possível interpretar a própria arte aqui criticada como símbolo da obsessão e do ímpeto do inumano, ignorante de delicadeza, generosidade e confiança nos outros. Pareceu-me, todavia, um caso de arte de ação, especificamente, mal trabalhada, posto que o estilo dos traços e as próprias cores foram trabalhos notáveis.

Ainda que deslize ao criar um tom convicto para o personagem, derrapando ora em demasiado didatismo, ora em ação sem sentido por páginas, Ellis soube utilizá-lo como personagem reflexivo, um verdadeiro espelho para delinear as consequências que a falta de atenção aos detalhes traz, paradoxalmente, ao indivíduo que vê a falha no mínimo detalhe – falo, evidentemente, de diferentes tipos de percepção, uma mais emocional e móvel, outra mais racionalista e imóvel. É algo mais do que bem-vindo nas narrativas super-heróicas, paqueradoras do maniqueísmo e devedoras dos grandes pensadores, dos quais retiram, quando muito, algum traço ácido ou mórbido. Na dialética entre o que é chamado de pessimismo e otimismo pelo senso comum, o perigo demoníaco parece sempre mais astuto ao se esconder nas brechas do que se estabelece como missão própria, e aqui o messianismo toma outra dimensão, mais banal e palpável, mas também mais assustadora, daquelas que, quando sondada nesse gênero dos quadrinhos, traz um sorriso ao canto da boca de qualquer fã.

Raramente se erra quando se liga as ações extremas à vaidade, as medíocres ao costume e as mesquinhas ao medo. Nietzsche, aforismo 74 de Humano, Demasiado Humano

Karnak
Roteiro: Warren Ellis
Arte: Gerrardo Zaffino e Rolando Boschi
Cores: Dan Brown
Letras: Vc’s Clayton Cowles
Editora original: Marvel Comics
Data original de publicação: Outubro de 2015 – Janeiro de 2017

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