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Crítica | Kung Fu Panda 2

por Davi Lima
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Po: Olha só, é isso. Cicatrizes curam.

Shen: Não, não elas não. Feridas curam.

Po: Ah sim. O que as cicatrizes fazem? Elas desaparecem, eu acho?!

Sem medo de contrariar a piada da obviedade de o protagonista Xiao Po ser adotado, muito menos de subutilizar o papel do personagem mestre Shifu na história, a diretora Jennifer Yuh Nelson utiliza o tempo da narrativa a seu favor, transgredindo a clássica realidade da aventura em defesa do Kung Fu; em prol da deformação corporal do panda em símbolo completo de paz. Se dentro desse universo da franquia da Dreamworks a lógica e as fórmulas se submetem ao misticismo  personificado e simbólico de cada animal como efeito de poder, não há mais treinamento adaptado com comida para um panda treinar Kung Fu, como houve no filme anterior; agora é um treinamento próprio de restauração. 

Nesse segundo filme, qualquer dúvida sobre destino e escolha quanto ao protagonista ser o Dragão Guerreiro se eleva ao patamar do heroísmo trágico, concretiza-se a regeneração da memória apresentada na história. Partindo disso, é preciso observar como o uso do 2D ao contar o passado do vilão Shen e do herói Po apresenta um efeito oposto ao 3D do presente para incitar os dramas de cada personagem. Enquanto o passado do pavão Shen apresenta classe nas ilustrações da China antiga, numa lentidão e visão longitudinal, as memórias de Po transmitem movimentação rápida de cores vivas e rabiscos de traços mais soltos para representar tragédia com “fofura”. São contradições claras no uso da imagem de retrato e também de narrativa. A primeira é contada, narrada por uma espécie de oráculo ovelha, enquanto a segunda são puras emoções de Po por símbolos que representam Shen em seu corpo de pavão. 

Assim, os dramas são bem estabelecidos no tempo. No ato de se preservar no poder e de ter o amor dos seus pais, Shen causa uma tragédia para evitar uma profecia sobre seres preto e branco, um futuro projetado pelas próprias ações de evitá-lo. Já Po, como Dragão Guerreiro, humilde e famoso na Vila da Paz, como representado na sua nerdice, não tem mais sonhos de heroísmo em 2D como no primeiro filme. Há o seu presente 3D de poder que o faz progressivamente chegar ao 2D que vai o confrontar.

Dessa forma, a diretora vai aprofundando sua história divertida e emocional, tanto na modelagem da animação quanto nos meios que constroem o protagonista, como o humor relacionado à forma física singular do panda. Se no princípio do filme há o tutorial do Mestre Shifu quanto a Paz Interior, sendo Po a personalidade oposta a ela, o que se eleva em drama é a paternidade do Sr. Ping, o ganso que conserva a conexão com o projeto de descoberta de Po sobre seu passado. Invertem-se as emoções quando o Mestre duvidoso é deixado de lado na história, enquanto a desconfiança é centrada no próprio Po preocupado com suas emoções do passado desconhecido. 

Tal inversão é preservada pela maneira como o corpo do panda, mais uma vez, é tratado com foco sutil. Ao mesmo tempo que Po dificulta uma jornada longa pelo cansaço rápido que sente, nas cenas de luta com os Cinco Furiosos eles vão ajustando o peso pesado dele a favor do combate. Até a personagem Tigresa, em valor emocional, afirma a singularidade do treinamento de Po. Da mesma maneira, a diretora usa a abertura estética do filme para trabalhar com animações diversas e contar uma história em tempos diferentes, utilizando o brilho digital e a frontalidade cômica para encurtar, assim como empolgar, a caminhada dos protagonistas até a China. Vira linguagem “gameficada” ao explorar o humor na falta de sutileza dele ao se infiltrar na cidade, e vira também um exemplo de como a persona do protagonista impulsiona a narrativa automaticamente, numa espécie de herói que move um jogo modelado em Pac Man. Acontece tanto isso que até a cena divertida de Po se movimentando pela cidade é isométrica e tudo (visão de cima de uma cidade que mostra o movimento de pontos em um tabuleiro) para alcançar também emocionalmente ao realismo.

A realidade de armas de fogo pertencentes ao vilão pavão é uma antítese poderosa, da mesma forma como Po tem como sua arma principal o Kung Fu. A ameaça da tecnologia bélica contra a perseverança das artes marciais se torna histórica. O filme se mantém nessa constante divisão paralela e objetiva, assim como o panda se situa entre seu humor animado para derrotar o vilão sem segurança de seus conflitos emocionais, e a Tigresa, amplamente segura, usa a emoção como maneira de revelar confiança. No medo da “belicidade” destruir o Kung Fu como ataque defensivo, os grandes mestres preferem se esconder, uma falta de fé no misticismo a transformar a realidade. Por isso que, no filme, as batidas temporais são tão importantes, pois quando se coloca essa dimensão, ao qual Po se vê pelo seu passado em descoberta, tanto o momento  da inesperada empatia de Tigresa, como a falha em batalha servem para a pausa no tempo. Então acontece a morte da fisicalidade como ponto mais importante para vencer ou para suportar a vilania colocada no filme.

Logo, o projeto “gameficado” que a diretora utiliza para a jornada curta e rápida dentro da cidade da China volta à tona. A regeneração da memória pelo conhecimento do passado em 2D só é possível na transcendência, na compreensão do externo equilíbrio fora do ser. Não é e nunca foi sobre aceitação pessoal do panda, e sim sobre o xintoísmo, Ying Yang, que o panda em suas cores preto e branco representa. Na grande simbolização do filme e do protagonista, de Dragão Guerreiro como escolhido, de panda como resistência corporal natural a impactos no Kung Fu, de cores representativas de antítese em prática de vida, e de herói trágico com passado rendido. A nerdice e admiração de Po por lutar em câmera lenta com Mestres do Kung Fu tensforma sua humildade, e o desafio desajeitado para derrotar o vilão vira a fonte de inspiração para entender a Paz Interior no limite para a deformação da realidade; do ser panda em símbolo completo, em imagem e forma redonda no ar. A tal união da física e espiritualidade numa cena de humor épica. Em defesa gestual, Po realoca os ataques da arma bélica contra si. 

Em geral, a grande força de Kung Fu Panda 2 e do trabalho da diretora em provocar um efeito dramático mais intenso para criar um grande filme, é saber utilizar a comédia de raízes ocidentais e os artifícios diversos, estabelecidos na dinâmica gráfica do formato digital da animação, para contar história em tempos diferentes e transformações ambíguas para o protagonista. Torna-se, assim, o Kung Fu Panda ocidentalizado em direção de volta à arte marcial profunda de vivência, não apenas prática de aceitação, ou compreensão das particularidades de quem pratica — mas que pode provocar no espectador mais do que uma visão horizontal da realidade, confrontada com o filme ficcional, mais vertical, numa espiritualidade cômica que Po acaba inspirando em quem assiste.

Kung Fu Panda 2 (Kung Fu Panda 2, EUA, 2011)
Direção: Jennifer Yuh
Roteiro: Jonathan Aibel, Glenn Berger
Elenco: Jack Black, Angelina Jolie, Gary Oldman, Dustin Hoffman, Jackie Chan, Seth Rogen, Lucy Liu, David Cross, James Hong, Jean-Claude Van Damme
Duração: 91 minutos

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