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Crítica | Leviatã (2014)

por Luiz Santiago
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Devido à necessidade de contexto histórico-filosófico para compreender o que Oleg Negin e Andrey Zvyagintsev quiseram mostrar com o roteiro de Leviatã (2014), texto premiado no Festival de Cannes, reproduzirei aqui um parágrafo que escrevi para explicar o personagem principal de Tudo Pelo Poder (2011):

Thomas Hobbes escreveu uma das mais incríveis obras sobre o poder, a soberania e a estrutura do contrato social: O Leviatã. O nome refere-se a uma criatura marinha e mitológica de proporções monstruosas, muito presente no imaginário popular medieval e bíblico (Livro de Jó, capítulos 40 e 41). Com base na mitologia, Hobbes criou uma “teoria política” cuja base é a de que os homens são egoístas e o mundo não satisfaz todas as suas necessidades, por isso mesmo, no estado natural, todos disputam riqueza, segurança e glória. Para que essa “guerra de todos contra todos” não exista, é necessário um contrato social. Esse contrato necessita de um grupo de pessoas (ou uma única pessoa) cuja função é observar e punir quem quebrar as regras estabelecidas – e aquilo que chamamos de “Justiça” passa a existir. A esse grupo (ou essa pessoa), Hobbes dá o nome de “Soberano”, cujo principal objetivo é “manter a paz e punir os que a perturbam”. O soberano é o Leviatã do título.

O cenário do Leviatã de Zvyagintsev é o noroeste da Rússia, mais especificamente uma cidade da Península de Kola, às margens do Mar de Barents. Kolia (Alexei Serebriakov em uma interpretação que toca o espectador) tem uma propriedade que é requisitada pelo prefeito da cidade. Não vemos as negociações ou ofertas do prefeito para o cidadão, mas tomamos conhecimento de que elas aconteceram em algum momento. Kolia se recusa a vender a propriedade e recorre à justiça. Com a entrada de um amigo vindo de Moscou e a abordagem das relações pessoais do protagonista com o filho, a mulher e os amigos, temos os componentes sobre os quais a força do Leviatã irá agir através da extrema corrupção que faz funcionar as engrenagens do Estado. Qualquer Estado.

Muito se tem dito que Leviatã é uma crítica ao governo russo, mas isso é apenas uma parte da verdade. A Rússia é sim um país extremamente corrupto sim mas não é o único cuja máquina política massacra o indivíduo só para conseguir o que quer. Veja o caso do Brasil. Ou, se preferir permanecer na Europa, analise o fracasso econômico e desmantelamento das relações entre governo e povo em países como Itália, Portugal, Espanha, Grécia e França (embora, neste último caso, de uma forma menos intensa, até neste início de 2015, se comparado aos outros países citados).

A sensação de abandono e danação de Kolia é aos poucos dissecada no texto, primeiro na briga com o prefeito, depois com a extensão para os magistrados, para a polícia, e então, para os amigos. Ao mesmo tempo que temos um filme de caráter simbólico, uma sátira política bem realizada, estamos diante da história de uma vida que é destruída em todos os aspectos. A fotografia escura de Mikhail Krichman aumenta ainda mais essa sensação, dando-nos a impressão de que algo ruim está para acontecer a cada nova cena, um medo igualmente alimentado pela sombria música de Philip Glass.

Política, filosofia e religião se misturam para dar o tom central de Leviatã. E talvez aí resida o parcial fracasso do filme — apesar de ser uma obra muito boa, ela só alcança esse status se vista pelo seu aspecto político, mas como produto completo, falha em dar importância igual para o sistema, o papel da Igreja Ortodoxa, as relações humanas (destaque para as familiares e fraternas), a corrupção e os espelhos bíblicos, já que o filme é uma espécie de recriação da história de Jó e, principalmente, da história da Vinha de Nabote.

A história da Vinha de Nabote

Esta é a referência bíblica mais exata em que Oleg Negin e Andrey Zvyagintsev se basearam para escrever o roteiro de Leviatã. O evento é narrado no 1º Livro de Reis, capítulo 21. Segue a história.

***

Nabote, um indivíduo de Jezreel, tinha uma vinha nos subúrbios da cidade, perto do palácio do rei Acabe. Um dia o rei propôs-lhe comprar-lhe aquele pedaço de terra. “Quero fazer um jardim dessa terra”, explicou-lhe, “porque está junto ao palácio.” Oferecia-lhe pagar em dinheiro ou por troca com outra vinha melhor.

Mas Nabote respondeu: “Não, eu nunca poderia vender essa terra porque se trata de uma herança dos meus antepassados, já de há muitas gerações. Deus não mo permite.” Acabe foi para casa abatido e indignado. Não queria comer e meteu-se na cama, com a cara virada para a parede. […]

Ao ouvir o lamento do rei Acabe, Jezabel então pôs-se então a escrever uma série de cartas com o selo real, e endereçou-as aos líderes da cidade de Jezreel, onde vivia Nabote. Nelas dava a seguinte ordem: “Façam uma proclamação por toda a cidade, para que a população jejue e ore. Convoquem Nabote, e arranjem dois marginais que o acusem de ter amaldiçoado Deus e o rei. Levem-no depois e executem-no.

Os chefes municipais obedeceram àquelas instruções. Convocaram uma reunião, acarearam Nabote com dois meliantes, os quais, sendo gente sem consciência, o acusaram de ter amaldiçoado Deus e o rei. Nabote foi arrastado para fora da cidade e apedrejado até morrer. Depois, os líderes da cidade participaram a Jezabel que Nabote já estava morto.

Quando a rainha tomou conhecimento disso, falou a Acabe: “Lembras-te da vinha que Nabote não te queria ceder? Pois bem, já poderás tê-la. O homem morreu!” Então Acabe desceu para ir tomar posse da terra.

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Decadência, injustiça e tragédia são os elementos principais do longa. Embora seus blocos dramáticos não sejam plenamente coesos entre si, eles funcionam bem de maneira isolada, especialmente o elemento simbólico — na verdade, o seu grande atrativo e com certeza algo que encanta as comissões de Festivais de cinema –, que traz quadros de líderes soviéticos como Kruschev, Brejnev, Chernenko e Andropov como possíveis alvos em um piquenique com vodka, kebabs e tiros. Há ainda a citação de Iéltsin (“o líder bêbado”) e a foto de Vladimir Pútin na parede do escritório do prefeito corrupto da cidade. Não é de admirar que o Ministério da Cultura da Rússia tenha torcido o nariz para o longa, muito embora o Ministro Vladimir Medinsky tenha tentado remediar suas duras críticas após Leviatã ter sido pré-indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em dezembro de 2014.

Leviatã ainda mantém os ingredientes caros à filmografia de Zvyagintsev como simbolismos naturais (aqui, mostrado por um esqueleto de baleia que claramente dá a entender a presença assustadora do Leviatã, próximo à casa de Kolia), a força da natureza em torno dos personagens — a exploração das paisagens naturais são um verdadeiro primor — e cenas ternas, que são poucas e estão espalhadas entre o início e o meio da fita.

Andrey Zvyagintsev realiza um bom trabalho de crítica ao mostrar o lado político de seu país natal e de mais uma série de países pelo mundo afora. Mesmo que não consiga um pleno resultado ao final, devido à mistura inadvertida de componentes dramáticos distintos, ele consegue fazer de Leviatã um filme que realmente vale a pena assistir. Mais um assustador exemplar de como o Estado pode tirar a liberdade de um homem e reduzi-lo a nada sem necessariamente ter provas ou reais justificativas para isso.

Leviatã (Leviafan) — Rússia, 2014
Direção: Andrey Zvyagintsev
Roteiro: Oleg Negin, Andrey Zvyagintsev
Elenco: Elena Lyadova, Vladimir Vdovichenkov, Aleksey Serebryakov, Roman Madyanov, Anna Ukolova, Sergey Pokhodaev, Kristina Pakarina, Dmitriy Bykovskiy-Romashov
Duração: 140 min.

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