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Crítica | Lincoln

por Fernando Campos
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Era um sonho antigo de Steven Spielberg dirigir uma cinebiografia do presidente americano Abraham Lincoln. Ainda em 2001, a Dreamworks (estúdio fundado por Spielberg) adquiriu os direitos do livro Team of Rivals: The Genius of Abraham Lincoln, material base para o roteiro de Lincoln. Porém, devido a problemas na produção, desistência de atores contratados, insatisfação com os roteiristas e a agenda cheia do diretor, o filme foi lançado apenas em 2012, mais de uma década depois da compra dos direitos do livro.

Porém, apesar dos problemas, Spielberg jamais desistiu da idéia, explicitando seu sonho em levar a história do presidente adiante. No entanto, quando um diretor possui essa obsessão, o resultado pode ser distinto. Ou a paixão do cineasta pelo material resulta em uma obra exagerada e com passagens desnecessárias ou gera um filme produzido com imenso cuidado e respeito. Em Lincoln, há um misto dos dois fatores. A direção de Spielberg, aqui, é uma das mais refinadas de sua carreira, porém, o roteiro peca pelo foco excessivo na construção do “mito” Abraham Lincoln.

O longa se passa durante o final da Guerra Civil americana. Mesmo próximo da vitória contra os confederados, o presidente Lincoln (Daniel Day-Lewis) luta por outro objetivo, a aprovação de uma emenda para abolir a escravidão. Entretanto, devido a proximidade do fim da guerra, parte do partido Republicano, o mesmo do presidente, ignora a proposta. Além disso, os democratas, membros da oposição, lutam para barrar a emenda. Além disso, enquanto tenta influenciar o congresso, Lincoln precisa lidar com a insatisfação de sua esposa Mary Todd (Sally Field), traumatizada pela morte de um filho e receosa que o mais velho Robert (Joseph Gordon-Levitt) aliste-se no exército.

Apesar das tentativas do roteiro em não glorificar demasiadamente Lincoln, destacando como ele era, às vezes, um pai e marido falho, inclusive, ignorando o filho mais velho e chamando sua esposa de desequilibrada, Steven Spielberg demonstra total desinteresse por essa parte da história e foca no desenvolvimento de uma aura mística em torno do personagem-título

A direção de Spielberg aqui é contemplativa, mostrando Lincoln em contra luz ou filmando-o de perfil, evocando sua silhueta eternizada por estátuas, quadros e monumentos. Além disso, há sempre uma luz intensa entrando pelas janelas dos cenários, criando uma sensação de misticidade e, até mesmo, fantasia. Já a trilha sonora de John Willians, com seus característicos instrumentos de sopro, transmite sabedoria sempre que o presidente discursa ou dialoga.

Aliás, o roteiro, escrito por Tony Kushner, aposta em longos e bem escritos diálogos, normalmente com o protagonista contando alguma história, que colocam sobre Lincoln a imagem de um homem com dom para liderar, ponderado, sábio e sempre com algo para ensinar. Porém, se o trabalho do roteirista e do diretor é perfeito em transformar Lincoln em um ser quase que santificado, o mesmo não pode ser dito sobre a veracidade histórica do longa.

Alguns erros graves de Lincoln na presidência, como a censura a veículos de oposição, sequer são citados aqui, pelo contrário, fatores como esse são retratados pelo texto como mera ladainha de democratas. Para piorar, o roteiro comete o grave erro de reduzir o papel dos negros a meros espectadores, torcendo para que os brancos votem a seu favor. Além disso, a história dos soldados, que poderia destacar os negros de maneira ativa, quase não é explorada.

Aliás, isso não prejudica apenas os personagens negros, como também qualquer um do núcleo de guerra. Veja, por exemplo, como o filho de Lincoln fica aquém da história a partir do momento que se alista no exército. Além disso, o foco excessivo na construção do protagonista tira espaço de outros personagens com imenso potencial, como Mary Todd, construída por Sally Field com esforço admirável, mas que parece existir apenas apenas para proporcionar momento dramáticos para Lincoln. Falando nisso, toda a trama familiar é pouco desenvolvida, servindo apenas como mero registro histórico, sendo um verdadeiro desperdício, uma vez que poderia criar camadas no personagem-título.

Felizmente, a trama política é muito bem desenvolvida. O roteiro não esconde a corrupção ocorrida para comprar votos, apesar de representá-la como algo aceitável para os objetivos do presidente, em mais uma chance descartada para inserir dualidade em Lincoln. Porém, o jogo de influências entre os congressistas é pontuado com precisão, fica claro porque cada político apresentado escolheu seu voto e é um belo exercício analisar as estratégias adotadas por cada partido. É justamente nessa parte da história que Tommy Lee Jones destaca-se, mostrando o quão fervoroso Thaddeus Stevens era e sua resistência ao precisar esconder opiniões para ajudar na aprovação da emenda.

Porém, é Daniel Day-Lewis que rouba a cena a todo momento. O ator adota um ritmo de fala pausado e um tom de voz acolhedor, dando a sensação de que cada palavra dita é repleta de veracidade e sabedoria. Já nos momentos de maior eloquência, Day-Lewis demonstra como Lincoln era centralizador e intransigente, inserindo mais camadas em seu personagem do que o próprio texto.

Para os admiradores de Abraham Lincoln, o longa dirigido por Steven Spielberg é uma reverência à importância do presidente para a história norte-americana. Porém, para quem busca maior precisão histórica, o filme é decepcionante, reduzindo os negros a um grupo a ser salvo, tornando a obra carente de informações sobre o período. Ainda assim, Spielberg é impecável em seu maior objetivo aqui, imortalizar Lincoln.

*Crítica originalmente publicada em 27 de dezembro de 2017.

Lincoln – EUA, 2012
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Tony Kushner
Elenco: Daniel Day-Lewis, Sally Field, Tommy Lee Jones, David Strathairn, Joseph Gordon-Levitt, James Spader, Hal Holbrook, John Hawkes, Jackie Earle Haley, Bruce McGill, Tim Blake Nelson, Jared Harris, Lee Pace, Michael Stuhlbarg, Lukas Haas, David Oyelowo, S. Epatha Merkerson, Adam Driver
Duração: 150 min

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