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Crítica | Mal dos Trópicos

por Luiz Santiago
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O cinema é uma arte que comporta o maior número de concepções imagináveis e inimagináveis de arte. Através da grande tela, símbolos, enigmas, emoções e chavões são projetados, e através deles, surge o caminho de nossa fuga do mundo real para aquele idílico ou terrível mundo que nos é apresentado. As reações ao ver um filme, variam de espectador para espectador, o que dá à sétima arte uma percepção subjetiva. No entanto, algumas obras conseguem atingir a todos e geram sentimentos que vão do ódio à adoração. Em seu livro Esculpir o Tempo, o cineasta russo Andrei Tarkóvski se debruça sobre o caráter especial de encanto que alguns filmes possuem. Estas realizações fazem o espectador pensar, poque o incomodam, geram ondas de mobilização interna, ondas essas que banharão os diálogos fora da sala escura, e se tornarão referências cinematográficas para aquela pessoa. Raros são os filmes que conseguem essa proeza, filmes pelos quais é impossível passar ileso, e Mal dos Trópicos, quarto longa-metragem do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul, é um desses filmes.

Minha primeira experiência com os filmes do diretor não foi nem um pouco animadora. Ao sair da sessão de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), eu não sabia o que tinha acabado de assistir. A beleza estética e formal do filme eram as únicas coisas que eu havia abstraído, ou seja, o filme me fugira. Intrigado, fui em busca de outras obras do diretor, e me deparei com esse drama fantástico, que além de trazer a essência da cultura religiosa do sudeste asiático, apresenta uma gama de leituras possíveis, já que não define nenhum caminho fixo de interpretação. A vida, a morte e a transformação do homem são o cerne da história, e ao fim da última cena, perguntamo-nos se o que entendemos por “ser humano” é pelo menos uma nomenclatura aceitável para nos definir.

À primeira vista, a longa introdução do filme não significa nada. Sequências em diferentes lugares e com diversos personagens parecem ensaiar uma obra niilista. Mas quando essas cenas alcançam o nível máximo do aceitável incompreensível, os vários espaços começam a se interligar. Relações são estabelecidas, e o drama passa a ser construído com base em duas colunas: o contato do homem com a natureza, o (s) espírito (s) e a morte, e a relação com as pessoas próximas a ele. No entanto, essa ideia da ligação entre homens, fantasmas e natureza não é transmitida do modo como conhecemos no Ocidente, um evento exótico digno de exorcismo. A relação do homem frente ao seu universo é algo completamente normal e vital, indissociável do espaço, da vida cotidiana, das ocupações. Percebemos que é impossível destacar essas personagens de seus espaços, do mesmo modo que não dá para concebê-las afastadas umas das outras. Tudo no mundo de A. Weerasethakul se completa e tem um motivo de ser.

A câmera e os enquadramentos parecem ser um olhar divino para o que acontece, tal o escrupuloso detalhe na composição dos quadros cênicos. A natureza impera. Desse modo, o verde é a cor predominante, mas as diferentes tonalidades dessa cor e o choque com outros espaços de cor contrastante revelam mundos em conflito. A cidade é apresentada como um nicho de selvageria destruidora e a floresta como um criadouro de espiritualidade selvagem. As cores e a duração dos planos em cada um desses espaços nos indicam qual é o mais edificante para o homem, onde ele consegue ser ele mesmo e encontrar-se.

O amor transforma. Essa afirmação ilustra muito bem a segunda parte da fita, o momento em que o romance entre os dois rapazes é elevado a tão alto grau de transformação, que não se basta pela carne, pelo toque, pela tara. Seguindo uma lenda nativa, o diretor nos guia por mundo em transformação, e nessa segunda parte do filme as mudanças ocorrem através de uma busca gerada pelo afeto. A entrada de Keng no coração da floresta é ao mesmo tempo a busca por alguém que se perdeu e um mergulho em seu próprio interior, em seu inconsciente, em sua alma selvagem. A busca pelo outro torna-se no reconhecimento de si mesmo, de suas várias versões, de seus instintos, medos, lembranças. Quanto mais adentra a esse espaço desconhecido, mais “animal” (ou mais “humano”?) ele se torna, a ponto de entender os grunhidos de um macaco, sentir-se no corpo de um animal em agonia (ou seria ele mesmo?), e enfrentar o seu maior medo que ao mesmo tempo é o seu maior desejo. Os animais, que antes só preenchiam o espaço em que vivia a personagem, agora são seus “companheiros de espécie”, estão, como ele, ameaçados por um perigo possível ou prestes a fazer parte de um plano maior, de uma passagem para outro tipo de vida.

Criando uma atmosfera de sentimentos e intensidade, o som direto e a trilha sonora do filme podem ser classificados como sons-concretos. Os cortes súbitos e as diferentes melodias que ouvimos parecem pregadas ao cenário como se fizessem parte daquilo que vemos, não daquilo que ouvimos. A materialidade do som parece aumentar conforme o filme avança, e sua intensidade dramática chega a tal ponto de servir como motivo para fechar a obra, a “música do amor”, a memória de um tempo que se confunde com a atual realidade, e é modificada por ela. As notas dos instrumentos e a voz humana se tornam o sussurro do vento e a melodia das folhas em movimento.

Com uma naturalidade inacreditável, o elenco de Mal dos Trópicos parece estar representando suas próprias realidades. O ator Sakda Kaewbuadee é quem se destaca em sua jornada, especialmente na sequência final, quando apresenta um domínio frio e muitíssimo técnico das expressões faciais, movimento dos braços, mãos e corpo dentro do limitado espaço de um plano médio. A direção de Apichatpong é milimétrica, tanto no que se refere ao cenário em torno dos atores quanto aos próprios atores em relação a esse espaço metafórico, mítico e poético. A simplicidade dos figurinos retiram a importância material da história e direciona o olhar do espectador para a estonteante fotografia (são três os diretores de fotografia responsáveis pelo filme).

As mudanças ocorrem no coração, na mente e no corpo humano. Durante o processo, é natural que ele veja a si mesmo como se estivesse de fora, como se fosse um segundo ou terceiro espectador que acompanha atentamente as variadas metamorfoses pelas quais passa. Por isso, os intertítulos e a lenda que nos guia na parte final de Mal dos Trópicos parece perfeitamente legítima a toda história: nós entramos no mesmo jogo de auto-observação que a personagem principal, e vemos não só uma busca, mas uma transformação, e por também sermos parte dela, vemos o que a própria personagem vê, enquanto se transforma. Diferente de tudo aquilo que eu já vi no cinema, e muito diferente da minha ininteligível experiência em Tio Boonmee…, Mal dos Trópicos me arrebatou completamente, e eu já sinto criar-se uma nova percepção de cinema e de humanidade. Definitivamente, esse é um filme transformador.

Mal dos Trópicos (Sud Pralad, Tailândia, França, Alemanha, Itália, 2004)
Direção:
Apichatpong Weerasethakul
Roteiro: Apichatpong Weerasethakul
Elenco: Banlop Lomnoi, Sakda Kaewbuadee, Huai Desson, Sirivech Jareonchon, Udom Promma
Duração: 118min.

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