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Crítica | Maranhão 66

por Luiz Santiago
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Maranhão 66 é o mais polêmico filme de Glauber Rocha. Primeiro, porque foi uma encomenda feita pela equipe de publicidade de José Sarney, candidato a governador do Maranhão e vitorioso nas urnas (com uma ajudinha do Mal. Castelo Branco) ao produtor Luiz Carlos Barreto. Barreto então convidou Glauber Rocha (a quem já conhecia) para dirigir o filme, que tinha uma meta: documentar a posse do Governador José Sarney.

A polêmica vem à tona porque Sarney se tornou figurinha carimbada e mal vista na política brasileira desde então. Ele Aliou-se à ditadura e depois se afastou dela para conseguir destaque no cenário da redemocratização, que por um truque de cartas do destino, acabou colocando-o na presidência da república.

Há quem questione e condene Glauber Rocha por ter louvado Sarney em sua posse, em 66. Mas não vamos entrar nesse mérito. É importante lembrar que Glauber filmou um Sarney que chegava pela primeira vez a um grande cargo político. O homem execrável que hoje conhecemos como Sarney ainda estava em processo de manufatura. É claro que podemos interpretar isso de uma forma ou outra, gostar ou não da postura do cineasta em aceitar a dirigir tal filme, mas, convenhamos: é possível à pessoa que dirigiu Deus e o Diabo na Terra do Sol dois anos antes realizar uma propaganda pura de louvor a um representante de um sistema que ele denunciava?

O fato de ter filmado um evento desse porte e especialmente esse representante político é um detalhe bom para ser discutido, mas não antes de ser contextualizado (caso contrário, vamos cair numa trilha que também nos fará condenar Agnès Varda por ter filmado Saudações aos Cubanos e tantos outros cineastas que acompanharam a primeira leva de uma onda política com proposta de novidade). É importante ainda destacar que Rocha aceitou o convite de Luiz Carlos Barreto porque precisava de dinheiro para realizar seu filme seguinte, Terra em Transe. Isso porque Deus e o Diabo, a despeito de seu sucesso de crítica, não foi um sucesso de bilheteria, o que deixava Rocha carente de patrocínio para filmar o roteiro que tinha acabado de escrever e queria desesperadamente produzir.

É em Maranhão 66 que Rocha faz importantes experimentos de alegoria estética, uma forma de enxergar a realidade da fome que o diretor iria tornar cada vez mais complexa ao longo dos anos, chegando ao clímax em A Idade da Terra. Outro destaque vai para o trabalho com o som, feito ao lado de Eduardo Escorel, que Rocha conheceu durante as filmagens de Maranhão 66. Essa amizade é importante, porque Escorel vai assumir a edição de 4 filmes de Rocha no futuro: Terra em Transe, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, O Leão de 7 Cabeças e Cabeças Cortadas.

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O demagogo José Sarney discursa enquanto a câmera de Glauber Rocha filma a miséria do Maranhão. Corvos e crianças, um homem que faz de um penico um prato de comida, pessoas à beira da morte, péssima infraestrutura em toda grande São Luís, fome e moradias caindo aos pedaços. Não é uma campanha de louvor muito boa, convenhamos, tanto que o próprio Sarney resolveu boicotar a distribuição do filme, logo após a falsa alegria que ele demonstrou quando o curta foi exibido para um seleto público num cinema de arte em São Luís. O momento verdadeiramente de louvor a Sarney vem com os belos planos em contraplongée que Rocha realiza por alguns segundos, na fase final do curta.

Maranhão 66 é um incrível exercício de ironia ou propaganda política, como queiram enxergar. Independente da visão, é impossível negar a eficiência das imagens mostradas enquanto o discurso vazio e hoje ainda mais repugnante vindo de um homem que se enraizou na política brasileira e só lhe tem feito mal desde que tomou posse pela primeira vez em um cargo importante. E quer saber? Ainda bem que Glauber Rocha filmou isso. E ainda bem que foi um cineasta como ele. Porque ao invés de legenda rosa e outras belezas, temos na tela o retrato de um Maranhão e de um Brasil que parece não ter saído do lugar desde que aquilo foi filmado. E pior: tendo o próprio Sarney ou seus familiares como integrantes do sistema que deixa tudo do jeito que está.

E se há ainda alguma dúvida sobre o valor cinematográfico e histórico de Maranhão 66, basta lembrar que o filme faz surgir uma discussão de análise histórica profunda e traz à tona feridas políticas abertas já algum tempo, algo que muitas obras hoje moderninhas e tidas como “neutras” ou “politizadas” não conseguem sequer aludir ou perdem o fôlego e a validade de seus argumentos cedo demais. Para a realidade de um Brasil que ainda luta contra a miséria, Maranhão 66 é um pedaço de memória viva, algo que devemos olhar e chegar à conclusão de que aquilo pelo que hoje lutamos para que o nossa realidade seja melhor já era alvo de discussão em pauta há muito tempo…

Maranhão 66 (Brasil, 1966)
Direção: Glauber Rocha
Roteiro: Glauber Rocha
Elenco: José Sarney, povo e políticos maranhenses.
Duração: 10 min.

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