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Crítica | Matrix

por Guilherme Coral
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estrelas 5,0

O mundo à nossa volta é real ou apenas uma construção mental de nosso cérebro? A máxima de Descartes, cogito, ergo sum, pode, realmente, provar nossa existência? Ou tudo não se trata apenas de reflexos, sombras na parede de uma escura caverna? Em cima dessa dúvida, inspirado diretamente por obras de ficção-científica como Ghost in the ShellO Mundo por um Fio, os irmãos Wachowski firmaram sua obra-prima cinematográfica, Matrix. O princípio é simples e extremamente complexo ao mesmo tempo, atuando sob diferentes camadas que retomam às origens do pensamento ocidental. Mas apenas ideias não formam um filme e é necessária uma precisa execução para colocar em tela tamanha complexidade. Vamos, portanto, entrar no buraco do coelho e revisitar o longa-metragem que marcou época.

Sem dó, nem piedade, os Wachowski nos jogam no meio de seu universo. Uma cena de perseguição, com Trinity (Carrie-Anne Moss) fugindo de policiais e agentes, introduz uma narrativa onde tudo é possível: correr pelas paredes, desviar de balas e pular distâncias impossíveis. O espectador não é preparado e o choque inicial é certeiro, seja um marinheiro de primeira viagem ou um fã de carteirinha do sci-fi. Pulamos, então, para Thomas Anderson (Keanu Reeves), programador e hacker nas horas vagas que adota o nickname Neo em suas peripécias virtuais. Notícias de jornais, em segundo plano, na tela de seu computador dão indícios do que veremos nos minutos a seguir. A bagunça e a escuridão de seu quarto revela não só uma possível antissocialidade como uma fuga dos padrões da sociedade – temos aqui um homem claramente cansado do mundo à sua volta. Uma mensagem, no seu computador, porém o acorda literal e figurativamente falando. Wake up, Neo. O, até então, sr. Anderson começa uma jornada pelo desconhecido, se torna Alice no País das Maravilhas, Dorothy na Terra de Oz e logo descobre que todo o seu mundo não passa de uma construção virtual – o mundo verdadeiro é dominado pelas máquinas que utilizam os humanos como fonte de energia.

Matrix conta com uma narrativa fluida, redonda, que encadeia organicamente cada um de seus eventos – um fato leva ao outro em uma aventura praticamente incessante, com uma trama que quase nada se divide em diferentes focos. Neo nos representa em tela e sua estupefação é a nossa conforme ele descobre cada detalhe sórdido da realidade dele escondida. O roteiro de Andy e Lana é preciso, sabendo exatamente quando revelar cada ponto de seu universo e, por mais que tenhamos alguns diálogos expositivos, esses são bem encaixados e não revelam mais do que devem. A dose de mistério é constante, bem inserida em frases que não deixam claro quando o mundo se tornou daquela forma. Mesmo a retratação daquele universo distópico é exibida em pequena frequência – poucas vezes vemos a situação real do mundo fora da nave Nabucodonosor, o que garante o choque e o espetáculo visual do excelente design de produção.

Mas o diabo mora nos detalhes e são nesses que o filme se exalta. Desde a aparência suja e sucateada da nave, até a condição limitada de seus tripulantes, tudo nos faz questionar: a liberdade realmente vale à pena? Essa dúvida ganha uma persona através de Cypher (Joe Pantoliano), um homem que apenas quer viver em seu mundo de ilusões. Essa problemática é sabiamente introduzida após cada um dos elementos “novos” serem explicados para nós. Dito isso, o filme se divide em quatro atos bastante distintos: o primeiro indo do início até o despertar de Neo fora da Matrix; o segundo vai até o jantar de Cypher e o agente Smith (Hugo Weaving); o terceiro termina com a decisão de resgatar Morfeu (Laurence Fishburne) e  último, caracterizado pelo segundo despertar do herói, encerra o filme. Cada um desses conta com objetivos narrativos bem delimitados, levando o espectador em uma jornada quase didática por toda essa complexidade, que passa a ser percebida como simples graças a essa cuidadosa exposição.

Apesar dessa estrutura ser bem mastigada, Matrix é um típico filme que merece ser revisitado inúmeras vezes graças ao amplo tabuleiro que ele dispõe. Observemos o agente Smith, por exemplo, iniciando como um simples mecanismo de defesa da rede, calmo, metódico e calculista, o antagonista se revela tão humano quanto os fora-da-matrix: ele quer sair daquele mundo limitado, quer sair da caverna mas suas amarras não o permitem. Ele seria um programa defeituoso ou uma manifestação de inteligência artificial? Por que ele quer ir para outro lugar? Não se trata de algo programado? Há uma interessante profundidade escondida sob a figura tida como rasa de Smith e essa é apenas um dos muitos questionamentos levantados pelo filme. Paremos para olhar agora o lendário Morfeu, que dentro do mundo virtual é uma pessoa totalmente diferente daquela fora. Vejam como sua figura inabalável e imponente se torna humana, quase paterna quando o vemos no mundo real pela primeira vez. Fishburne imprime uma notável bondade nas falas do personagem, que juntamente da calma passam a ideia de sabedoria para o espectador.

Todo esse universo, contudo, precisa ainda de algo crucial para o cinema de ficção científica: os efeitos especiais. Não, não falo de CGI e sim de uma construção crível do mundo apresentado, técnicas que nos fazem acreditar que um homem pode desviar de balas ou pular entre prédios. Os Wachowski, para tal, se apoiam nos efeitos práticos e somente utilizam a computação gráfica quando realmente necessária (vide as sentinelas) ou as balas em câmera lenta. O exagero que veríamos no segundo filme ainda não se faz presente e tudo é tão bem encaixado e disfarçado que a obra se mantém  atual mesmo dezesseis anos após seu lançamento – impossível não vibrar na emblemática cena de Neo desviando das balas. Para mascarar cada um desses efeitos, temos a montagem, merecedora do Oscar que recebeu, de Zach Staenberg, que sabe exatamente quando partir do close-up para os planos mais abertos, a fim de transmitir uma maior naturalidade para os movimentos impossíveis que vemos em tela. O uso da câmera lenta, embora constante, é também bem controlado e atua em conjunto com a movimentação e ótimas coreografias das cenas de ação.

É essa mistura harmônica de elementos bem-pensados que fazem de Matrix um filme atemporal, que traz questionamentos milenares para hoje em dia em uma distopia que nos prende dos segundos iniciais até o inesquecível clímax do quarto ato. Um longa bem construído, complexo mas bem explicado e fechado em si mesmo, ele não precisava de continuações, especialmente as duas que vieram, que não fazem jus ao ótimo trabalho dos Wachowski aqui. Certamente um sci-fi que merece ser visto e revisto ao longo dos anos.

Matrix (The Matrix – EUA/ Austrália, 1999)
Direção:
 Andy Wachowski, Lana Wachowski
Roteiro: Andy Wachowski, Lana Wachowski
Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss, Hugo Weaving, Gloria Foster, Joe Pantoliano, Marcus Chong, Julian Arahanga
Duração: 136 min.

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