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Crítica | Meia-Noite em Paris

por Luiz Santiago
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A arte como metalinguagem é um dos temas mais mais presentes na filmografia de Woody Allen. Desde sua leitura cômica de clássicos russos como Guerra e Paz e Crime e Castigo em A Última Noite de Boris Grushenko (1975), o diretor firmou o pé nas representações artísticas da “fauna urbana novaiorquina” e, além de temas caros às suas películas, tais como neurose, relações amorosas e sociedade (abordados de diferentes modos, dependendo do filme), é em torno da arte como metalinguagem que se desenvolve algumas de suas mais fecundas reflexões. Em Meia-Noite em Paris (2011), artistas dos anos 1920 e da Belle Époque são visitados por um personagem do século XXI, no melhor estilo do realismo fantástico. O resultado é um filme leve, sem preocupações didáticas, muito divertido, bem dirigido e atuado.

A positiva recepção que a crítica e o público tiveram sobre a película não é sem justificativa. Meia-Noite em Paris é um filme que traz o sabor dos clássicos de Allen, ajustando pelo menos três tempos históricos diferentes, cada um deles contendo seus problemas existenciais e suas representações artísticas. Aqui, o diretor novaiorquino deixou de lado o pessimismo realista que acompanhou seus dois filmes anteriores (Tudo Pode dar Certo e Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos) e plasmou uma comédia de cunho romântico, cercada de personalidades e temas que (mais uma vez) interrogam a legitimidade de certos hábitos sociais e os arranjos amorosos por comodidade ou para exibição.

De certa forma, a atmosfera artística de Vicky Cristina Barcelona (2008) é relembrada em Meia-Noite em Paris. A oposição entre a realidade norte americana (para a qual Paris é um grande shopping) e a sensibilidade artística francesa são uma versão mais séria e mais irreal que a apresentada na película de 2008. Aqui, a arte abandona o pedantismo acadêmico para tocar a sensibilidade dos espectadores. A atmosfera diegética é criada pelos personagens. Só na abertura do longa temos voz over, passando logo depois para a voz off em um acertado recurso narrativo inicial. O abandono do narrador e a personificação da produção artística em dois atores são indícios de um outro caminho usado pelo diretor afim de discutir o tema. Se em Barcelona a arte estava ligada ao campo da libido, em Paris, a arte é o passaporte para um mundo que não existe mais, o ideal do Paraíso Romântico de todo aquele que nega a realidade e passa a almejar o passado como conforto e fuga.

Mas além de uma nova constituição narrativa e uma homenagem a artistas que Allen admira, Meia-Noite em Paris é um presente do diretor à Cidade-Luz. No princípio, percebemos uma leve diferença na apresentação dos créditos. Primeiro as produtoras e, então, ao som de Si Tu Vois Ma Mère (de Sidney Bechet), imagens-ícones da cidade são mostradas em uma ponte temporal que vai do amanhecer à madrugada e daí, passamos para o diálogo em over / off entre Gil (Owen Wilson) e Inez (Rachel McAdams), o casal protagonista. A beleza e a magia do espaço urbano parisiense são mostrados pormenorizadamente antes da aparição dos atores, um recurso usado pelo diretor apenas em Manhattan (1978), filme que faz de Nova Iorque o palco e o motivo dramático para o desenrolar do enredo. Meia-Noite em Paris é um filme único porque foi feito para um lugar único, um lugar que abrigou grandes nomes da história da arte e que encerra em sua própria mitologia a fantasia demonstrada na obra de Allen.

A nostalgia dos “tempos áureos” da humanidade faz parte do discurso de qualquer indivíduo descontente com seu presente e paixão um pouco cega pelo que já se foi. O desejo da fuga pode se dar de duas formas distintas, a primeira, com a mudança geográfica — representada por discursos que enxergam na mudança de cidade, Estado ou país o remédio para seus mais diversos problemas; e a segunda, com a fuga ideológica para outros tempos — representada pela vontade de ter nascido em outra época e adotar um estilo de vida remotamente parecido com o período sonhado. Em Meia-Noite em Paris, Gil, o personagem principal, sofre desses dois sintomas. Mudar-se para Paris é praticamente a declaração de um não-casamento, seu maior desejo não assumido; e viver nos anos 1920 é a idealização de um espaço propício à escrita, seu maior desejo para supostamente curar a falta de inspiração.

Como em busca de material para um ensaio crítico, Woody Allen realiza os desejos de Gil e ele volta para a Era de Ouro e para a Belle Époque, onde conhece Scott Fitzgerald, T.S. Eliot, Gertrude Stein, Picasso, Buñuel, Dalí, Man Ray, Hemingway, Cole Porter, Matisse, Gauguin, Degas, Lautrec, dentre outros. A conclusão a que o escritor chega é que independente da época em que se vive, massacradas pela vida que é sempre insatisfatória, as pessoas tendem a achar que em determinado lugar e numa determinada época elas seriam muito mais felizes, quando, na verdade, a felicidade está onde se deseja. E é esse otimismo que segura o filme e o torna ainda mais belo.

Sem querer separar dramaticamente os diversos tempos históricos, o diretor escreveu um roteiro amplo de espaços de atuação, não isolando a história central no presente. O realismo fantástico que imprime à obra ganha em 1920 e em 1890 as suas doses de 2010, reafirmando o desejo humano, seja em qual época for, de fugir de onde está para um lugar melhor onde possa viver. Além disso, as personagens femininas são uma espécie de guia da história, alcançando em todos os tempos um papel importantíssimo na vida dos homens. Todas essas características também são encontradas em outro filme-fuga do diretor, A Rosa Púrpura do Cairo (1985), obra em que brinca com a realidade e o mundo imaginário através de um filme dentro do filme: os personagens de “A Rosa Púrpura…” estão “presos” ao mundo diegético e a um determinado ponto do roteiro, porque o protagonista fugiu de cena, situação remotamente parecida com a de O Anjo Exterminador (Buñuel, 1962), cuja ideia é sugerida ao espanhol pelo protagonista de Meia-Noite em Paris.

A direção de Woody Allen traz algumas surpresas, mas o grande destaque está na direção de atores e, dentre eles, Owen Wilson se faz ver melhor. Vindo de produções hollywoodianas menores e, em boa parte, de baixa qualidade (com exceção de seus bons trabalhos em Os Excêntricos Tenenbaums e Viagem a Darjeeling), o ator revela-se um ótimo alter-ego woodyano, sem carregar nos trejeitos e sem imprimir uma postura excêntrica à constituição de sua personagem. Rachel McAdams está um pouco mais que correta, bela e engraçada, formando um ótimo par com Wilson. Carla Bruni não se destaca pela atuação, que é normal, mas sim pela presença, que marca de maneira satisfatória as suas cenas. Adrien Brody como Salvador Dalí é um dos melhores momentos do filme. O ator conseguiu trazer a excentricidade do pintor surrealista para o tom de voz, o movimento dos olhos e a teatralização das falas. Marion Cotillard e Léa Seydoux são duas agradabilíssimas presenças nativas de Paris, ambas fazendo uso de seus belos e carregados inglês com sotaque e interpretações marcantes. Todo o elenco de apoio está, em uma palavra, maravilhoso.

A fotografia de Darius Khondji permite ao espectador um desfrute visual de cada um dos tempos narrativos. Com exceção de uma cena, todas as viagens no tempo são filmadas em noturnas e o fotógrafo conseguiu escurecer os ambientes de forma que não ficasse impossível reconhecer os atores e que pudesse nos transmitir a sensação de passagem do tempo, uma vez que não há absolutamente nenhum truque de montagem para sinalizá-los. Da Paris no presente, fortemente iluminada, passamos para uma cidade sépia na Era do Ouro e para uma Belle Époque amarronzada e com filtro para as internas. Mesmo a angulação em cada espaço obedece uma dinâmica diferente e a duração dos planos também transmite a sensação de movimento interno — mais intenso ou mais tedioso — em cada época.

O desenho de produção assinado por Anne Seibel passa do clean ou antiquado contemporâneo para o rebuscado das décadas passadas e então para o kitsch de algumas externas, que servem como mescla dos diferentes estilos arquitetônicos ou decoração de interiores. Cada bar, casa, festa e salão são detalhadamente preenchidos e gostaria de destacar a sequência do noivado de Adriana com um certo pintor surrealista: a decoração extravagante e a fotografia esverdeada deram ao recito uma aura muitíssimo apropriada, tornando-o um dos grandes momentos de imersão do espectador no filme.

Meia-Noite em Paris é um roteiro antigo de Woody Allen. Desde as filmagens no Rio Sena em Todos Dizem Eu Te Amo (1996), o diretor acalentava a esperança de um financiamento europeu para rodar inteiramente em uma de suas cidades favoritas. O filme é um sonho realizado e fala da realização de um sonho. Ao fim da película, voltamos para a realidade insatisfatória munidos da constatação desse sentimento através dos tempos. Mas a realidade não se mostra ameaçadora, ao contrário, uma vontade de (re)conhecer o que já se conhece caracteriza a sequência final. A mágica da vida acontece e, mesmo que a felicidade não se tenha prometido, é finda a busca por um lugar ideal e cheio de possibilidades para realizações. O ‘aqui e agora’ é o lugar onde tudo acontece. Essa é a nossa Era do Ouro. O início de uma outra vida, talvez. A nossa oportunidade de ver bater meia-noite em qualquer Paris particular.

Meia-Noite em Paris (Midnight in Paris, Espanha, EUA, 2011)
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Elenco: Owen Wilson, Rachel McAdams, Kurt Fuller, Mimi Kennedy, Michael Sheen, Nina Ariadna, Carla Bruni, Yves Heck, Corey Stoll, Adrien Brody, Marion Cotillard, Léa Seydoux
Duração: 94min.

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