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Crítica | Memória Entre Duas Margens

por Luiz Santiago
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estrelas 4,5

No dia 5 de agosto de 1960, o Alto Volta desaparecia do mapa africano para dar lugar a um país chamado Burkina Faso, que então se tornava independente dos franceses após 63 anos de violenta colonização. Situado no Sael africano, o pequeno país sem litoral passou do domínio político da França para o conformismo do domínio cultural exercido por diversas outras culturas extracontinentais. Uma das nações mais pobres do mundo, essa república africana vive de sua agricultura local, e mantém, apesar de tudo, muito do que fora os rituais tradicionais de seu povo, embora já adaptados às tendências e modificações trazidas pelos colonizadores.

O trabalho arqueológico de trazer à tona a identidade cultural dos habitantes de Lobi, uma região de Burkina Faso, é o foco do documentário Memória Entre Duas Margens (2002), dos diretores Frédéric Savoye (um tunisiano formado cineasta em Paris) e Wolimité Sié Palenfo (um escultor burquinense), que conseguiram, em sua estreia, realizar um filme de grandioso potencial crítico, e que nos apresenta um panorama político, histórico e cultural da ocupação francesa e o processo de resistência-aceitação dos nativos.

O que nos chama atenção nesse documentário é como os diretores organizaram o material histórico de que dispunham. A estruturação de diversas fontes alcançou um modelo narrativo vivo, de modo que o diálogo com o espectador se dá o tempo inteiro, mesmo que não haja a isso um direcionamento aberto. A partir dos registros em diários de campanhas militares, temos a visão do colono-conquistador, e de outro lado, as sequelas deixadas por todo esse processo na memória das famílias sobreviventes. O relatos de crueldade são muitos, vividos pessoalmente ou ouvidos de narrativas ancestrais. Essa característica dos depoimentos alcança um duplo efeito, que pode ser tanto o de documentação oral e histórica de uma geração inteira, quanto exposições do imaginário popular.

Contudo, não só a mortandade e o extermínio estão presentes nas memórias dos entrevistados. O modelo político primitivo em choque com a organização hierárquica trazida pelos franceses é o ponto mais forte de cisão entre essas culturas. Vivendo em um sistema social matriarcal e não tendo um chefe tribal reconhecido por toda a localidade, é de se imaginar como foi difícil para os burquinenses de 1897 lidarem pela primeira vez com os chefes de cantões, cargo de controle local criado pelos franceses. Essas autoridades nativas antes inexistentes alcançam sua dupla função, a primeira, de servidão assistida, a segunda, de divisão entre o povo subjugado. O documentário percorre o antes eu depois dessa inserção de poder na sociedade burquinense, e explica perfeitamente o caminho seguido pela república presidencialista surgida com a independência em 1960. Ao seu lado, o viés econômico não difere do caráter agrícola de subsistência predominante no país. Sobre essa estrutura, os plantios do café, do milho e de algumas hortaliças são visivelmente os mais importantes desde há muito, citados como existentes desde o início do domínio estrangeiro.

O dinamismo da montagem faz de Memória Entre Duas Margens um filme rico e bem finalizado. As fontes históricas pessoais são narradas em over, e para efeito de uma apreensão dialética, todas as leituras de ataques e violência são acompanhadas por cenas de danças e cantos em off, intercaladas entre textos ou imagens panorâmicas da vida urbana local. Duas versões de colonização são opostas, e se tivéssemos apenas isso, o documentário já valeria a pena ser visto. Como a abordagem vai além do antagonismo sociopolítico entre franceses e burquinenses, temos em mãos um estupendo exemplar de releitura e resgate da memória história de um povo, algo muito mais interessante em se tratando de uma produção cem por cento africana.

O único ponto fraco que contém filme é a inserção de “takes de transição”, que mais parecem erro de montagem. À parte isso, estamos diante de um filme que se propõe a investigar a origem da guerra e dissabores de um povo, ao mesmo tempo que traz os rumos atuais por ele seguido e o resultado do sincretismo após tantos anos de dominação. Tal como em O Último Voo do Flamingo, percebemos a importância da memória dos antepassados, dos rituais e da tradição oral para os povos africanos. Memória Entre Duas Margens é, acima de tudo, um documentário-raiz.

Memória Entre Duas Margens (Mémoire Entre Deux Rives, Burkina Faso, 2002)
Direção: Frédéric Savoye e Wolimité Sié Palenfo
Roteiro: Frédéric Savoye e Wolimité Sié Palenfo
Duração: 1h30min.

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