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Crítica | Memórias (1980)

por Luiz Santiago
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A visita de Woody Allen ao universo de Ingmar Bergman em Interiores deu-lhe segurança para fazer ‘comédias sérias’ (ou dramas disfarçados de comédia) durante os anos seguintes, colocando-o no caminho de outro diretor que admirava muito, Federico Fellini, cuja filmografia, especialmente o clássico Oito e Meio, serviu de inspiração para a escrita do roteiro de Memórias (1980), obra que traz ingredientes da vida pessoal e artística do próprio Allen e que discute a existência humana e a validade da arte em um mundo cheio de dor e miséria.

No filme, Sandy Bates (Woody Allen) é um diretor de cinema que é obrigado a passar um final de semana em um hotel no litoral, onde seria realizado um festival com todos os seus filmes (especialmente as antigas comédias). O público do Sr. Bates — a piada com Psicose faz rir de imediato — não aprovava a nova abordagem existencialista do diretor e via em tudo aquilo uma espécie de “masturbação intelectual desnecessária”, sentimento que de fato tomava conta dos fãs de Woody Allen pelo tipo de filme que ele fizera nos dois anos anteriores, Interiores e Manhattan.

Essa guinada para a seriedade, no entanto, não retirou dos roteiros do diretor a face cômica (ou tragicômica, se preferir) dos personagens e dos enredos filmados. Todavia, a comédia mais leve, embora inteligente, dos tempos de Um Assaltante Bem Trapalhão e Bananas havia ficado para trás. Com uma visão de mundo cada vez mais pessimista e uma vontade cada vez menor de fazer rir, Allen buscava em filmes como Contrastes Humanos (1941) e Ladrões de Bicicleta (1948) conflitos e necessidades humanas que pudesse colocar em suas obras, não necessariamente pendendo para o lado sociopolítico, como seu personagem diz, mas sim para o lado verdadeiramente humano de ser e querer. E a melhor forma que o diretor encontrou para fazer isso foi olhando para o passado ao mesmo tempo que problematizava o presente.

Memórias, como o nome diz, possui um caráter histórico, pessoal e sentimental para o protagonista. Trata-se de um filme de forte caráter metalinguístico, claramente estruturado em Oito e Meio de Fellini, mas que visita outras obras do meste italiano, como uma homenagem indireta de Woody Allen, muito mais ousada e muito mais rica em apropriação de técnica e estética que aquela que ele fez a Bergman em Interiores. Vemos aqui a anarquia de Ensaio de Orquestra; a [breve e intimista] visita a uma adorável infância levemente inspirada em Amarcord; o impossível processo de filmagem como Fellini nos mostra em Anotações de um Diretor; a transformação da propaganda viva de As Tentações do Doutor Antônio por pessoas que vivem para propagandear suas causas, produtos e organizações; o glamour nada glamouroso da fama, os fãs, os críticos, os amigos repentinos e toda a sorte de novos conhecidos à la A Doce Vida e até uma cena no mar com direito a um elefante, isolamento e uma semi-pantomima, em planos que quase recriam momentos de Abismo de um Sonho, o primeiro longa que Fellini dirigiu sozinho.

Nas mãos do diretor de fotografia Gordon Willis essas indicações temáticas e visuais se transformaram em um teatro de sombras “clássico” no sentido mais cinematográfico da palavra. Apesar da atmosfera circense típica de Fellini que vemos em quase todo o filme (alternada com a atmosfera dos angustiantes pesadelos), Allen analisa de longe a sua própria filmografia e responde de forma ácida aos desafetos de seus novos filmes com simplicidade e imaginação. Ao realizar uma obra dentro da outra, o diretor cria uma imersão diferente no público, que acaba tomando a película não unicamente como figuração estilizada e exagerada de Woody Allen mas do próprio cinema e de todas as pessoas que fazem com que o cinema aconteça, da equipe técnica e criativa até os distribuidores, espectadores e críticos. E em cada um desses espaços, o homem por trás das lentes e os filmes que ele produz geram perguntas, reações e respostas diferentes.

Afinal, de quais memórias o diretor está falando em Memórias? Perceba que o filme nos cerca de elementos memoráveis que não necessariamente são nossos, mas que de pronto compramos como false memories, afinal, nós também fazemos parte do processo de construção dos longas dentro do longa. Desse modo, o jogo de luz e sombra de Gordon Willis, a direção de arte falsamente simples, canções icônicas como Moonlight Serenade (Glenn Miller), Brasil (Ary Barroso) e Three Little Words (Kalmar e Ruby), idas e vindas do amor, cinefilia, mágica, ufologia e “casos de família” formam as colunas que sustentam a obra e o ser do artista. Verdade ou mentira, experiência ou ficção, a arte — e o cinema, em especial — acaba sendo justamente isso, uma caixa de memórias onde é possível trocar cenários e enredos, fazer rir e chorar, e transitar entre várias camadas de realidade, ser uma pessoa em cada espaço sem necessariamente usar uma máscara (simbólica ou verdadeira) para isso.

Memórias é uma brincadeira cinematográfica que pode ser vista de tantas formas quanto o espectador conseguir eleger, tal qual Zelig (1983), outra obra-prima do diretor. É um filme sobre filmes, sobre quem faz, sobre quem assiste e sobre quem critica. E tendo tudo isso sido baseado em memórias do que vivemos, vimos, lemos e ouvimos, no final das contas, o filme ficará igualmente em nossa memória. O ciclo, então, se fecha. Fade out. Créditos finais.

Memórias (Stardust Memories) – EUA, 1980
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Elenco: Woody Allen, Charlotte Rampling, Jessica Harper, Marie-Christine Barrault, Tony Roberts, Daniel Stern, Amy Wright, Helen Hanft, John Rothman, Anne De Salvo
Duração: 89 min.

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