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Crítica | Meu Tio

por Luiz Santiago
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Pensem por um momento que a crítica feita por Charles Chaplin em Tempos Modernos (1936) à alienação do homem através do trabalho cada vez mais mecanizado e também à vida em uma sociedade fechada em rodas de obrigações mecânicas, tenha, de fato, gerado tudo o que o Vagabundo mais temia. Vinte e dois anos depois, essa sociedade plantada na realidade de Tempos Modernos floresce e é representada por Jacques Tati em Meu Tio (sequência temática de As Férias do Sr. Hulot, onde o personagem-título aparece pela primeira vez), obra que satiriza a mecanização e burocratização inúteis do cotidiano, o consumismo à beira da patologia e o afrouxamento das relações humanas devido a inversão da atenção e prioridade: a máquina, os protocolos e a etiqueta suplantam o bem-estar, a diversão e a própria humanidade.

Bastante criticado à época de seu lançamento por ter um pensamento considerado “esquerdista”, Meu Tio conseguiu atravessar muito bem a “prova do tempo” e os tropeços ideológicos atribuídos a ele, tornando-se um grande sucesso de público na França e fora dela, fazendo igual sucesso nos Estados Unidos e ganhando as graças da Academia, culminando com sua vitória no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1959.

Na obra temos o casal Arpel com seu filho de 9 anos, Gerard, que vive em uma casa futurista no subúrbio nobre de Paris. Com praticamente tudo automatizado em casa e com tanto barulho durante o funcionamento das coisas que mais parece uma fábrica em período de expediente, a residência é imponente na arquitetura (um pouco de Bauhaus e Déco) e tem decoração minimalista, um “vazio moderno que comunica-se bem“. Como sempre nos filmes de Tati, a direção de fotografia, a paleta de cores para os figurinos e os temas pontuais da trilha sonora não são elementos complementares nos significados dramáticos da fita, mas sim narradores auxiliares em um filme com um número bem pequeno de diálogos.

Do outro lado da cidade, no subúrbio pobre, está a casa e a barulhenta vizinhança do Sr. Hulot, irmão da Senhora Arpel e tio do pequeno Gerard. Com crianças, vizinhos e vendedores de todos os tipos gritando e brigando, temos a sensação de que nesse espaço há humanidade, vida de verdade. A arquitetura aqui é vintage, um pouco desgastada pelo tempo e com várias gambiarras para contornar defeitos estruturais — o apartamento do Sr. Hulot é um exemplo disso: não tem como não rir o trajeto que ele precisa fazer para chegar em casa –. As cores aqui são um pouco mais escuras, com maior contraste, predominando tons térreos e paletas mais densas de verde, distanciando-se do sentido e abordagem dada à mansão tecnológica dos Arpel, parte da obra que serviu de inspiração para Woody Allen conceber um dos blocos de sua própria crítica à tecnologia burra, o longa Dorminhoco (1973).

É justamente nesse tipo de duplo contraste — entre as cores e os espaços que elas caracterizam — que o fotógrafo Jean Bourgoin narra a oposição visual e emocional que público faz de imediato entre o lar dos Arpel e o lar do Sr. Hulot. No bairro nobre, ele se utiliza de cores suavizadas, com pouco contraste e maior incidência de luz e brilho (especialmente quando foca azul, rosa e verde, todos claros), preenchendo o vazio com uma espécie de “paz estática” que mais parece morte. A troca também funciona visualmente porque ‘suja’ ou ‘limpa’ o espaço sempre que o enfoque muda, aumentando a sensação de humanidade ou robotização cada vez que um desses refúgios são visitados. Vale ainda dizer que a trilha sonora para a casa do Sr. Hulot é quase circense, onipresente (ponto falho do longa, porque essa presença constante da música-tema chega a atrapalhar a recepção da obra a partir de determinado momento) e uma indicação clara do comportamento atrapalhado, mas adorável, do personagem.

Mas não é só de espaços, sátira à futilidade do materialismo (as visitas das vizinhas à Sra. Arpel e a hilária e longa sequência da “recepção taciturna” que fazem para tentar arrumar uma namorada para o Sr. Hulot falam por si só) vive o filme. O roteiro também fala da inocência, do viver a infância, da necessidade de relacionamentos — diminuídos e depois impedidos pela máquina — e da falta que um bom diálogo e um dia de brincadeiras pode fazer a uma pessoa. É por isso que Gerard gosta tanto do tio. O velho não está engessado ao sistema social onde vive, por mais que tentem forçá-lo. Hulot dá a oportunidade do garoto ser um garoto. O próprio Sr. tem um quê de criança não “contaminada” pela indiferença. Aos poucos, o Sr. Arpel percebe essa aproximação e se enciuma, tentando evitar, como desculpa, que o filho seja mal influenciado pelo tio.

Jacques Tati eleva ao extremo o comportamento de uma sociedade que se tornou marca e mercadoria nela mesma, utilizando esse exagero como ponte para satirizar algo que parece cada vez mais atual e mais frequente em nosso tempo. Sua mensagem doce, ao final, é recebida pelo público com um sorriso no rosto. Ele não é fatalista ou condenador. A forma como desconstrói essas “necessidades postiças” serve como princípio de reflexão e mudança. Mesmo que o filme canse um pouco pelo formato minimalista de expor essas questões — já comentei o papel que a música tem nesse critério –, a graça inocente do que é ser humano nos momentos mais improváveis vem, ainda que tarde, e não só encanta como também mostra esperança. Uma semente nascendo na selva de pedra.

Meu Tio (Mon oncle) — França, Itália, 1958
Direção: Jacques Tati
Roteiro: Jacques Tati (com colaboração de Jacques Lagrange e Jean L’Hôte)
Elenco: Jacques Tati, Jean-Pierre Zola, Adrienne Servantie, Lucien Frégis, Betty Schneider, Jean-François Martial, Dominique MarieYvonne Arnaud, Adelaide Danieli
Duração: 117 min.

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